As redações jornalísticas, especialmente as grandes redações, devem adotar um perfil horizontal, versátil e descentralizado, abolindo a tradicional subordinação dos designers aos repórteres e editores de texto. Para o espanhol Alberto Cairo, um dos maiores nomes da infografia mundial, a equipe ideal deveria ser multidisciplinar, incluindo além de jornalistas, também cientistas, economistas e sociólogos para que a abordagem de um tema jornalístico seja a mais diversificada possível.
Alberto Cairo veio recentemente a São Paulo para lecionar no curso Master em Jornalismo Digital do IICS. Em 2013, ele lançou The functional art – an introduction to information graphics and visualization, que mereceu o seguinte elogio do designer Nigel Holmes, ex-diretor de artes gráficas da revista Time: “trata-se do livro mais completo e sensato de infografia do mundo real já produzido; não vamos precisar de outro tão cedo.”
Formado em jornalismo, ele se opõe frontalmente à obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. Segundo Cairo, tal exigência é “néscia” e servirá de pretexto para que as escolas de jornalismo não sejam compelidas a aprimorar a educação dos alunos em termos de habilidades conceituais e tecnológicas.
A esse respeito, ele fez a seguinte observação ao Observatório: “o motivo pelo qual eu acho que equipes devem ser horizontais e que o diploma não deve ser obrigatorio não é por gosto pessoal. É porque as redações que melhor jornalismo fazem (não só de visualização ou dados), como ProPublica e NYTimes funcionam desse jeito. O fato de ter profissionais com diferentes backgrounds, e que todos esses profissionais sejam considerados no mesmo nível (todos são “repórteres” ou “editores”, e as equipes não são de “arte”) conduz a essa situação.”
Radicado na Flórida, onde leciona na Universidade de Miami, entre junho de 2010 e dezembro de 2011 ele viveu em São Paulo, onde foi diretor de infografia e multimídia da Editora Globo. Recentemente, Cairo escreveu uma introdução em português para o Manual de Jornalismo de Dados, uma obra coletiva produzida com o apoio do European Journalism Centre e da Open Knowledge Foundation. O texto de Cairo lista os principais desafios para o desenvolvimento da atividade no Brasil, mas aponta casos de excelência e diz que o futuro promete. Abaixo, a introdução do manual, republicada com a sua permissão.
Existe jornalismo de dados e visualização no Brasil?
Existe. Está crescendo? Quero acreditar que está, mas não de jeito sistemático e organizado, e não na grande mídia. Sendo honesto, tenho pouca esperança de que estas técnicas e ferramentas vão criar raízes profundas nela — com algumas exceções notáveis —, pelo menos até que não aconteçam algumas mudanças profundas. Aqui estão alguns dos principais motivos:
A alergia ao pensamento lógico, racional, e quantitativo:
Tenham em conta só os seguintes fatos: Alguns dos principais jornais do país continuam a publicar horóscopos sem pudor nenhum; as TVs nacionais cobrem aparições de virgens e santos como se fossem fatos, e não ilusões; a principal revista semanal de informação geral é uma fonte substancial de exemplos de grosseira falta de critério estatístico e visual. Estes são só sintomas de um fenômeno subjacente que pode gerar um clima pouco propício para o desenvolvimento da profissão.
A falta de conhecimento dos rudimentos de métodos de pesquisa:
O jornalista brasileiro, como muitos outros de tradição mediterrânea (não se esqueçam que sou espanhol) é, em geral, um escritor-humanista, não um pesquisador-cientista. Como ter os dois perfis é fundamental em qualquer redação, a mídia brasileira precisa hoje menos do primeiro e mais do segundo. Em algumas palestras no país, enquanto comentava exemplos de gráficos ou histórias que poderiam ser melhoradas, falei casualmente: “Aqui podem ver um caso claro de quando é melhor usar a mediana e não a média”, só para ficar chocado pelos olhares de confusão de uma parte da audiência. Se nós não sabemos algo tão básico como o que é uma mediana, o que dizer de desvio padrão, análises de regressão, valor-p, ou métodos bayesianos, tão em moda hoje graças ao sucesso de Nate Silver no The New York Times?
O ensino universitário do jornalismo: A falta de sabedoria científica e tecnológica é culpa, em grande parte, de um sistema de educação que não tem se adaptado às necessidades dos jornalistas de hoje. Em um mundo em que os dados são cada vez mais acessíveis, em que empresas e governos contratam especialistas para manipular dados antes de apresentá-los ao público, o corpo profissional, que na teoria teria que servir de filtro, carece das habilidades necessárias para cumprir com seu trabalho adequadamente. Pior, por culpa do próximo ponto que descrevo, também está se blindando contra colegas que possam ajudar nessa tarefa.
A obrigatoriedade do diploma: A decisão néscia de fazer o diploma universitário de jornalismo obrigatório para o exercício da profissão pode dificultar o emprego de gente com perfil diverso para as redações a não ser em posições de segunda categoria. Além disso, a exigência do diploma servirá também como desculpa para que os departamentos de Jornalismo não sintam a necessidade de se renovarem para oferecer aos estudantes um melhor treinamento em habilidades conceituais e tecnológicas. Por que isto é um grande desafio? Hoje é muito difícil achar jornalistas diplomados que, ao mesmo tempo, tenham conhecimentos científicos ou técnicos profundos. Não é só que o jornalista médio não saiba mexer com dados; é que não sabe nem ler uma tabela de números, contextualizá-los e extrair histórias, o que é muito mais importante. Como consequência, a grande mídia precisa contar com especialistas (cientistas, economistas, sociólogos, etc.) como repórteres e editores, e também com profissionais de ciências da computação para colaborar na análise profunda e na gestão de dados.
Me permitam fazer um parêntese neste ponto, e ser muito claro. Um hacker que desenvolve ferramentas para que os cidadãos acessem dados públicos, e que segue as regras éticas próprias da profissão, é tão jornalista quanto o repórter que escreve sobre o último escândalo do Governo, gostem os partidários do diploma obrigatório ou não. Se for contratado por um meio de comunicação, deve ser na posição de jornalista ou, pelo menos, com salário e poder de decisão equivalentes aos de um repórter ou editor no mesmo nível. Eu leciono infografia e visualização numa escola de Comunicação e Jornalismo. Não conheço nenhum caso de ex-estudante que tenha mostrado o seu diploma para um empregador durante uma entrevista. Os jovens jornalistas são avaliados pelas suas habilidades e conhecimentos.
Por que ter esperança: Na situação atual, portanto, é impensável que mesmo os melhores jornais do país reproduzam o que grandes meios de comunicação dos Estados Unidos — The New York Times, The Washington Post, The Boston Globe, LA Times, ProPublica, The Texas Tribune — estão conseguindo: juntar equipes multidisciplinares que sistematicamente criam complexos e profundos projetos de jornalismo de dados, visualizações e infográficos interativos. Essas publicações não consideram o jornalismo de dados acessório ou enfeite, mas elemento central das suas coberturas que não só dão prestígio, mas também atraem leitores. Em recentes palestras, Jill Abramson, diretora executiva do The New York Times, se referiu aos seus departamentos de “news applications” (aplicativos interativos de notícia), multimídia e infografia como pilares essenciais do jornal e do seu rumo futuro. Um dos exemplos mais citados por ela é Snow Fall, uma cobertura multimídia, que de forma muito orgânica mistura texto com imagem, animações e infografias.
Tendo em conta este panorama desolador, porque acho que o jornalismo de dados e a visualização podem crescer e, por sinal, estão crescendo no Brasil? No que é que baseio minha esperança?
Em primeiro lugar, em corajosas iniciativas dentro dos grandes veículos jornalísticos. São produto geralmente do esforço — não suficientemente reconhecido e sustentado — de pequenos grupos de profissionais com vontade e energia. A equipe do Estadão Dados e o blog Afinal de contas, de Marcelo Soares na Folha de S. Paulo são bons exemplos. São ainda só sementes de um fenômeno que teria que florescer nos próximos anos, mas pelo menos existem. Tem também projetos isolados, esporádicos, feitos por outros veículos da mídia, como as revistas Época e Veja, e jornais como o Correio, na Bahia, o Estadão, e a Folha. Porém, falta dar continuidade a estes casos notáveis.
Em segundo lugar, indivíduos e organizações além da mídia tradicional estão mostrando uma criatividade invejável. Não tenho intenção de ser exaustivo na listagem de projetos que tem chamado a minha atenção nos últimos tempos, mas gostaria de destacar alguns que combinam os dados com um interessante trabalho de design e visualização: InfoAmazonia e sua impressionante combinação de bancos de dados e representação cartográfica; o Radar Parlamentar, que analisa matematicamente os padrões de voto dos congressistas; as propostas resultantes do W3C, como o Retrato da Violência Contra a Mulher no RS e Para Onde vai Meu Dinheiro; e o projeto Escola que queremos.
Quem sabe, talvez sejam estes hackers, desenvolvedores, designers, jornalistas independentes, organizações não governamentais, e fundações os que ocupem um espaço hoje quase vazio, e os que cumpram uma parte importante da tarefa de informação pública que, em tempos anteriores, correspondeu à mídia tradicional. O futuro promete, em qualquer caso.
Ver também: Knight Center oferece curso gratuito sobre jornalismo de dados
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Angela Pimenta é jornalista e presidente do PROJOR