Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A origem e o trajeto do papel com a minuta golpista

(Foto: Reprodução)

Ainda me lembro do jurista Yves Gandra, entrevistado pelo UOL, afirmando com todo peso de seu prestígio e conhecimento que “é um documento que não tem nenhuma validade jurídica. Até porque é um papel que cuida de uma situação absurdamente impossível”. Que papel era esse encontrado na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Anderson Torres? Estávamos no dia 13 de janeiro de 2023, cinco dias depois dos ataques pelos fanáticos bolsonaristas na praça dos Três Poderes.

Ora, o papel não era uma folha solta, destinada a ser destruída na trituradora, mas algo bem elaborado com preâmbulo e artigos bem detalhados de um documento, era uma “minuta de decreto do golpe” (como assim passou a ser chamado) e estava bem protegido dentro de um pasta azul de couro decorada, na capa, com o brasão da República, como mostrou o ex-ministro da Justiça Flávio Dino.

Entretanto, embora o jurista Yves Gandra minimizasse, naquele dia, a importância do achado pela Polícia Federal e demonstrasse desconhecimento do seu teor, diante dos jornalistas Fabíola Cidral, Tales Faria e Madeleine Lacsko, veio dele a inspiração para a criação original daquele papel ou minuta do golpe. Nasceu, portanto, de uma interpretação jurídica errônea, partidária ou comprometida (cada um interpreta como quiser) de Yves Gandra do artigo 142 da Constituição, o germe daquilo que seria capaz de justificar um golpe de Estado.

Na identificação do itinerário ou roteiro da tentativa de golpe ocorrida no Brasil, deve-se retornar ao seu ponto de partida e recorrer à interpretação de Yves Gandra do artigo 142, no Consultor Jurídico de 28 de maio de 2020, pela qual, no caso “de um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a lei e a ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante”. Esse o km zero, a justificativa inicial necessária à elaboração da “minuta do golpe”.

Se nos dias de hoje, a OAB, Ordem dos Advogados dos Brasil, tem sido criticada pela imprensa por seu silêncio, diante da confirmação por altas patentes do Exército e vídeo tornado público, confirmando as intenções golpistas do ex-presidente, é importante ressaltar a reação imediata da OAB, em 2020, apenas cinco dias (2 de junho) depois da publicação do parecer jurídico de Yves Gandra.

No seu longo parecer, amplamente divulgado, a OAB deixou claro que a “Constituição Federal não confere às Forças Armadas a atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais. Falar em um “Poder Moderador” exercido pelas Forças Armadas não apenas é demonstração de uma hermenêutica enviesada, como também é um argumento sem qualquer lastro histórico”.

Nessa análise feita pela OAB do artigo 142, utilizado amplamente pelos bolsonaristas para justificar uma intervenção militar, aparecia um pormenor bastante revelador, também constante do noticiário da CNN Brasil sobre a questão. Do relato da OAB, constava uma citação feita pelo então presidente Bolsonaro, segundo a qual o artigo 142 permitia pedir uma intervenção militar para “restabelecer a ordem no Brasil”. Ora, essa citação tinha uma data: foi pronunciada na reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

Ou seja, quase um mês antes do parecer jurídico de Yves Gandra, publicado no Conjur. E surge, então, uma pergunta difícil de evitar: a interpretação jurídica do artigo 142 por Yves Gandra, propícia à justificação de uma intervenção militar, já era do conhecimento de Bolsonaro, antes de ser publicada?

E uma coincidência: nesse mesmo dia 2 de junho de 2020, no qual a OAB rejeitava sua interpretação, o jurista Yves Gandra (talvez ainda sem saber da reação da OAB) dava uma entrevista à CNN dizendo que a Constituição prevê o uso das Forças Armadas como medida “extrema e pontual para cumprir um deficiência dos Poderes”, embora afirmasse que, naquele momento, “não havia nenhum risco de ruptura”. Nessa entrevista, Gandra ainda afirmava que, no caso do Executivo ou Legislativo se sentirem sufocados pelo Judiciário, não se poderia recorrer ao próprio Judiciário, fazendo-se necessária a moderação.

Ninguém ignora que, já no começo do seu governo, Jair Bolsonaro procurava criar junto às suas bases populistas, misto de neopentecostalismo fundamentalista com uma extrema direita negacionista, a possibilidade de uma ruptura constitucional.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, o cientista político Christian Lynch, professor de sociologia e doutor em ciência política, sintetizou, numa entrevista à BBC Brasil, essa situação: “ele (Bolsonaro)  excita a base radical e, ao mesmo tempo, incute nos inimigos a crença de que ele é capaz de dar o golpe”.

Nessa altura, a interpretação do artigo 142 por Yves Gandra já havia sido encampada pelos bolsonaristas e o recurso ao uso do artigo 142, com autorização ou não do jurista, já fazia seu caminho nas redes sociais. Era um dos principais temas nas manifestações bolsonaristas pró-golpe e se tornou a palavra de ordem nos acampamentos junto aos quartéis. Diante da derrota eleitoral de Bolsonaro, seus seguidores, trajando as cores verde e amarela ou enrolados na bandeira nacional, pediam a intervenção das Forças Armadas, a pretexto de uma fraude eleitoral não comprovada, exigindo aos gritos a aplicação do artigo 142.

Gente simples, muitos facilmente influenciados por seus pastores locais, provavelmente nunca tinham lido e se lessem não entenderiam o texto do tão citado artigo 142, mas foi por fidelidade à interpretação enviesada desse artigo, no dizer da OAB em 2020, que alguns bolsonaristas mais ousados praticaram atos violentos no dia 12 de dezembro de 2023. Outro, ainda mais fanatizado, tentou explodir uma bomba nos arredores do aeroporto de Brasília, e mais de mil deles depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Correio do Brasil.