A tão decantada imprensa moderna da Espanha pós-Franco – quem diria? – pisou na bola. Até o excelente El País, tido como um dos melhores jornais do mundo, deixou-se levar pelo banho de sangue dos atentados de 11 de Março, em Madri, e cometeu um erro semelhante ao de seus concorrentes de Madri, Barcelona, Valencia e outros centros importantes.
Ingenuidade ou má-fé, não importa. A verdade é que, logo após os ataques terroristas aos trens de subúrbio que se dirigiam às estações de Atocha, Santa Eugenia e El Pozo, os diários circularam edições extras em que se apressavam a endossar do discurso do presidente de governo, o conservador José Maria Aznar, do Partido Popular (PP), a três dias das eleições gerais de domingo passado, culpando a organização separatista basca ETA pela carnificina.
Aznar tinha motivos para atribuir o crime à ETA, em vez de admitir a possibilidade de ter sido uma reação da al-Qaeda à sua decisão de jogar a Espanha na guerra contra o Iraque ao lado dos Estados Unidos de George W. Bush, do Reino Unido de Tony Blair e da Itália, de Silvio Berlusconi.
A imprensa de um pais evoluído, porém, não poderia ter caído nessa armadilha. Só na manhã de domingo (14/3), dia das eleições, é que os jornais viraram o jogo, noticiando a prisão de três marroquinos suspeitos e a divulgação de uma fita atribuída a um porta-voz da al-Qaeda, segundo o qual aquela organização árabe havia mesmo atacado Madri em reação à política de Aznar de alinhamento ao expansionismo belicista de Bush.
As emissoras de TV foram ainda mais levianas. Justifica-se: os dois principais canais de TV do país são da TV de España, emissora estatal e, portanto, vinculada diretamente aos donos do poder de plantão.
Os canais privados lembram o estilo Sílvio Santos, mais identificados com linha pão e circo do que com o jornalismo. Assim, os telespectadores puderam saber que o Real Madrid empatou com o Zaragoza por um gol no sábado, ficaram conhecendo as últimas fofocas sobre artistas, viram desenhos animados e filmes, acompanharam a repetição de cenas de socorro e enterros das vítimas do terrorismo, mas não tiveram praticamente acesso algum a informações mais concretas sobre as investigações em busca dos culpados.
Ora… se as marchas de protesto convocadas por Aznar levaram 2,3 milhões de pessoas às ruas de Madri, e um total de 11 milhões em todas as cidades da Espanha, com seguidos gritos de promessa de punição contra os assassinos, onde estariam e quais seriam aqueles assassinos?
Novos jornais
Quando estive na Espanha pela primeira vez, em 1973, encontrei um país atrasado em relação a outras nações da Europa. E não poderia ser diferente: a influência da longa ditadura de Francisco Franco Bahamonde (1892-1975), que durou de 1939 a 1975, se fazia sentir em todos os setores, entre os quais a imprensa. Alguns jornais, como o diário conservador ABC, não passavam de boletins oficiais de Franco.
A morte do ditador e o posterior Pacto de Moncloa levaram a Espanha a um curioso sistema de monarquia democrática, com um rei respeitado, Juan Carlos I, e com um primeiro-ministro – ou presidente de governo – escolhido por meio de deputados eleitos pelo povo.
Essa mudança não só possibilitou, mais tarde, a entrada da Espanha na União Européia como garantiu uma enorme evolução social, cultural e econômica do país. Surgiram jornais novos, como o respeitado El País (que hoje tem edições em Madri, Barcelona, Sevilha, Valencia e Bilbao) e outras publicações começaram a mudar.
Em março deste já complicado 2004, fiz minha viagem número 12 à Espanha. O plano era escrever uma reportagem sobre o potencial turístico do pais para o caderno ‘Viagem’ do jornal em que trabalho, O Estado de S. Paulo. Mas, diante dos atentados de M-11, acabei assumindo a cobertura do terrorismo e das eleições para o Estado, Agência Estado e Rádio Eldorado.
Papel ingênuo
Assim como o 11 de Setembro, o 11 de Março foi manchete no mundo inteiro. Na Espanha, a violência provocou verdadeiro trauma, que afetou inicialmente a capacidade de os jornais de Madri e de outras cidades apresentarem os fatos com o devido equilíbrio.
Insisto: influência só do trauma ou vontade de forçar a barra em favor do partido de José Maria Aznar? De qualquer forma, um erro brutal. A imprensa julgou. E julgou mal.
El País tentou se redimir na edição de domingo (14/3), dando como manchete de primeira página ‘Todos os indícios apontam a Al Qaeda’ – assim como o titulo secundário ‘Espanha vota sob a síndrome do pior atentado de sua história’.
Numa das páginas internas, a ombudsman do jornal, Malén Aznarez, explica que El Pais bancou a tese sobre a ETA na edição de quinta-feira porque confiou numa ligação telefônica de José Maria Aznar para o diretor de Redação, em que aquele garantia haver culpa do movimento basco nos ataques do 11 de Março madrilenho.
Caberia a Aznar, como político, usar o estilo típico da maioria dos políticos: manipular a informação de acordo com seus interesses. Mas a moderna imprensa espanhola não poderia ter assumido esse papel ingênuo – ou venal. É verdade que no domingo das eleições o povo espanhol deu um exemplo de comportamento evoluído. No entanto, às vezes, uma viagem à Europa é necessária para a gente perceber que o Brasil, apesar dos marqueteiros e das promessas inexequíveis de políticos, não é tão ruim assim.
Neste domingo, 14/3, às 22h, foi anunciada a vitória do Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE) nas eleições espanholas, e a queda do Partido Popular de Aznar.
******
Jornalista do Estado de S.Paulo, 40 anos de profissão e professor do Departamento de Jornalismo da PUC-SP