Monday, 09 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1304

Inglês como língua franca da ciência mantém hegemonia dos países anglófonos

(Foto: Gerd Altmann por Pixabay)

A tradução de artigos científicos e de divulgação científica no Brasil é uma realidade e faz parte do dia a dia dos pesquisadores de todas as áreas do conhecimento. Apesar de a tradução dentro do contexto científico ser entendida como uma atividade meramente instrumental, especialistas chamam atenção para o fato de que os usos linguísticos não são neutros nem estão livres do embate entre poderes. Com a expansão do inglês como língua franca da ciência, principalmente no pós-guerra, cresce a discussão sobre a homogeneização da ciência e o fomento à hegemonia dos países anglófonos.

Sendo o Brasil parte do chamado sul global, marcado pelo colonialismo, a comunidade científica do país necessita da intermediação de outras línguas. E essa relação desperta muitas questões. De um lado estão os pesquisadores que precisam tanto lidar com a literatura nessa língua estrangeira quanto produzir seus resultados a partir dela e de outro os possíveis intermediários desse processo, como tradutores especializados e editores de revistas científicas. 

A professora associada do Departamento de Línguas Modernas da UFRGS Patricia Reuillard, pesquisadora na área de Sociologia da Tradução e tradutora do francês há quarenta anos, lembrou que mesmo a tradução especializada abarca um trabalho intelectual criativo e que as conceitualizações fraseológicas ultrapassam a terminologia. Para a teoria da Sociologia da Tradução, área de estudo da professora, os textos literários partem de um jogo social complexo, entre interações de alianças e disputas. A tradução e a publicação de textos não são atos individualizados, eles fazem parte de uma relação entre agentes e instituições sociais, que ora estão em concorrência, ora estão em cooperação. 

Segundo a professora, uma grande parte das traduções no meio científico passam pela equivalência terminológica, que é a “relação estabelecida entre dois ou mais termos que cumprem, em línguas e culturas diferentes, a mesma função referencial”, porém essa linguagem também abarca o uso “metafórico da linguagem”, que é uma maneira de elaborar teorias e facilitar a comunicação, ou seja, a utilização de construções específicas em cada língua e área diferente. “O tradutor deve captar o ‘modo de dizer’ de cada língua e de cada área do conhecimento e não apenas encontrar equivalentes terminológicos”, afirma.

Essa especificidade da linguagem, em carregar consigo sua cultura e seus modos de dizer, é ponto relevante tanto para tradutores quanto para pesquisadores. A problemática da homogeneização do pensamento científico a partir da língua inglesa, acarretando a hegemonia cultural e política dos países anglófonos na dominação das publicações acadêmicas de alto impacto e a dificuldade de acesso de pesquisadores brasileiros nesse meio tem sido ponto pacífico entre acadêmicos e pesquisadores na atualidade.

Em toda a história das políticas de publicação e divulgação científica no Brasil houve uma série de problemáticas que culminaram na indústria de publicação científica da atualidade. A forma como a intermediação linguística interfere na produção e na divulgação de ciência no Brasil e em seu contato com a ciência no restante do mundo acontece em dois momentos. Primeiramente, no impacto que as traduções de obras estrangeiras tiveram para o início e o crescimento da cultura científica no Brasil e, em um segundo momento, na prática da tradução de artigos científicos e de divulgação científica referentes às pesquisas realizadas no país para serem publicados no exterior.

Sabe-se que a primeira tradução publicada no Brasil foi realizada pela Impressão Régia, quando finalmente o Brasil pôde ter um veículo de imprensa. A obra em questão foi a tradução do livro Elementos de geometria, de A. M. Le Gendre, traduzida pelo lente de Matemática na Academia Real dos Guardas-Marinhas, Manoel Ferreira de Araújo Guimarães. Essas primeiras traduções de compêndios didáticos e paradidáticos eram destinadas às várias instituições de ciência e ensino superior criadas no país a partir de 1808. As que se seguiram, em sua maioria, eram traduzidas do francês, mas também de autores alemães e ingleses, versavam sobre assuntos militares, marítimos e médicos e eram traduzidas por professores da Academia Real Militar e de outras instituições de ciência recém-criadas. 

Apesar desses primeiros movimentos em produção científica traduzida no Brasil serem impulsionados pela Imprensa Régia, o boom editorial brasileiro só foi acontecer a partir da década de 1930, com o início da Era Vargas. Nesse período houve uma preocupação em construir uma identidade de nação e incentivar o desenvolvimento urbano do país, tendo sido criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e instituídos os primeiros Centros Universitários. 

Como destaca a pesquisadora Cristina Carneiro Rodrigues, no artigo “O papel da tradução na pesquisa científica brasileira: primeiros movimentos” (2010), foi nessa época que foi criada a primeira coleção literária que impulsionaria as publicações de cunho educacional-científico no Brasil, “a Biblioteca Pedagógica Brasileira, projetada pelo intelectual e educador Fernando de Azevedo e empreendimento da Companhia Editora Nacional, dirigida por Octalles Marcondes Ferreira”. 

Essa coleção era formada por cinco subséries: Literatura Infantil, Livros Didáticos, Atualidades Pedagógicas, Iniciação Científica e Brasiliana, sendo que quase todas elas, com exceção da Literatura Infantil, publicavam tanto produções nacionais quanto traduções. Dentre essas subséries, as mais voltadas para divulgação científica foram as séries Iniciação Científica e Brasiliana. A primeira trazia guias e glossários sobre diversas áreas do conhecimento, como zoologia, psicologia, geografia e possuía um conteúdo mais introdutório. Nela os textos traduzidos eram indicados pelo nome do tradutor na capa e na lista de volumes publicados. Alguns registros de traduções realizadas por figuras conhecidas no meio acadêmico são: a tradução da biografia de Karl Marx, realizada por Menotti del Picchia; as 5 lições de psicanálise de Sigmund Freud, traduzida por Durval Marcondes e Barbosa Correia e Os mitos hitleristas de François Perroux, traduzido por Cecília Meirelles. 

Já a Coleção Brasiliana foi um dos maiores empreendimentos editoriais que se destinou a reunir um conhecimento sistemático dos assuntos nacionais. Ela trazia a publicação de artigos e ensaios de estudiosos sobre o Brasil, sua formação histórica e social, seus problemas históricos, geográficos, políticos, econômicos, entre eles livros clássicos e novos trabalhos sobre o assunto. Desde a sua criação, em 1931, até 1954 foram publicados 277 títulos da Coleção Brasiliana, sendo que 42 deles apresentavam traduções, a partir de línguas como o inglês, francês ou alemão. A maior parte desses textos eram relatos de viajantes e naturalistas que estiveram no Brasil no século XIX. Entre os professores, pesquisadores e intelectuais que assinaram essas traduções, destacam-se alguns nomes como Afonso Taunay, Américo Jacobina Lacombe, Carlos Lacerda, Edgar Süssekind de Mendonça, Jamil Almansur Haddad, Luiz da Câmara Cascudo e Sérgio Buarque de Hollanda, sendo que os nomes dos tradutores vinham, em sua maioria, impressos nas capas de cada volume. 

Outras duas coleções importantes para os estudos das questões nacionais foram a coleção Documentos Brasileiros (1936), pela Editora José Olympio, e a Biblioteca Histórica Brasileira (1940), pela Livraria Martins Fontes. Nesta última, foram publicados 306 volumes, divididos em três séries, sendo o primeiro com 60 títulos, 80% deles traduções, o segundo com 233 títulos, com 50% de traduções, e o último dedicado a livros de arte, contando com apenas 13 volumes. 

Muitas áreas do conhecimento (Geociências, Botânica, Biologia e Etnologia brasileira) se beneficiaram com essas publicações e com as traduções por elas editadas. O levantamento feito pela pesquisadora Cristina Carneiro Rodrigues demonstrou que os cientistas e intelectuais (historiadores, médicos, filósofos, etnólogos, educadores), principalmente entre os anos de 1930 e 1940, ao mesmo tempo em que produziam suas próprias obras, disponibilizavam outras obras de pesquisadores renomados de suas áreas por meio de traduções. Esse trabalho permitiu que os estudantes e pesquisadores tivessem acesso a importantes fontes de consulta advindas dos centros mais desenvolvidos na época.

Um bom exemplo da intermediação linguística e sua história na ciência brasileira pode ser verificada a partir das edições da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, criada em 1909 e editada até hoje. Ela consta na base SciELO e tem todas as suas publicações completas e digitalizadas, em acesso aberto e online. O pesquisador estadunidense William Franklin Hanes se debruçou sobre todas as edições dessa revista histórica em sua tese intitulada “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz from the age of empire to the post-Gutenberg world: língua franca and the culture of tropical medicine” (2016), em que demonstrou muitas questões referentes à linguagem, à tradução e à história da produção e divulgação científica no Brasil em relação ao restante do mundo. 

Hanes conta logo no início de seu trabalho qual foi a motivação de seus estudos, que para ele teve uma relação muito pessoal. Em meados dos anos 2000, ele e sua esposa, que é brasileira, saíram do Brasil para morar nos EUA e acabaram sendo picados por uma cepa específica de ácaro, que infestava os pombos com ninhos nas sarjetas em seu apartamento alugado. Isso causou no casal uma reação em cadeia no sistema imunológico e eles ficaram com uma hipersensibilidade em que sentiam em suas peles os parasitas rastejando. Depois de passarem por alguns especialistas nos EUA, até mesmo em institutos universitários, sem obterem resultado, voltaram para o Brasil e foram aconselhados a procurar a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Ele nos contou o episódio em entrevista: “apesar de médicos americanos acharem que estávamos inventando tudo, finalmente conseguimos contatar o Dr. Nicolau Freire na Fiocruz, que nos garantiu que não estávamos malucos, dizendo que pessoas de todo o mundo vinham até eles buscando ajuda com o mesmo problema, e ele resolveu a situação rapidamente para nós. Nem é preciso dizer que percebi o imenso valor do trabalho do Instituto. Anos depois, eu me deparei com as Memórias durante meu doutorado e fiquei fascinado a ponto de mudar todo o meu projeto de pesquisa”. Foi assim que o pesquisador iniciou seus estudos, relacionando as questões científicas ligadas às áreas da medicina tropical, parasitologia médica e microbiologia médica com as questões linguísticas, históricas, políticas e sociais ligadas à divulgação científica no Brasil e no mundo. 

Hanes relembrou em seu trabalho como historicamente a língua inglesa foi se tornando a língua franca da ciência. Inicialmente, na Era dos Descobrimentos e crescimento dos novos imperialismos, havia grandes três potências na Europa: França, Alemanha e Grã-Bretanha. O crescimento econômico dessa fase iniciou um movimento de língua franca no comércio e tinha o francês como predominante nos campos culturais e diplomáticos e o alemão no âmbito científico. Com o fim das duas Grandes Guerras e com o início da Guerra Fria em curso, o inglês foi alçado à língua de representação da democracia contra o bloco comunista. Com o fim da Guerra Fria e o avanço da economia global dita descentralizada, as informações passaram a ser estruturadas pelo universo digital e exigiam uma língua única, que foram então baseadas na língua inglesa. No meio científico houve também um monopólio das empresas multinacionais, que necessitavam de uma linguagem abrangente para se comunicar. Nesse âmbito, as editoras internacionais incentivaram a consolidação do inglês como língua franca da ciência, como indica Hanes “até porque é adequado aos seus interesses servir os seus principais clientes – as universidades anglófonas”.

No Brasil a política linguística da revista Memórias acompanhou essas questões políticas-históricas. Hanes indica em seu texto que a revista logo provou seu valor enquanto pioneira nos estudos da medicina tropical e foi “vigorosamente multilíngue” até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando o Brasil esteve no grupo dos Aliados. Quinze anos depois do fim da Primeira Guerra, a revista sentiu os efeitos da política nacional, com o início do regime Vargas (1930), nesse momento o Instituto perdeu autonomia e financiamento e o uso das línguas estrangeiras, principalmente o francês, que era a língua dos intelectuais na época, sofreu declínio e foi caindo em desuso. 

Depois, com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e a diminuição da era multilíngue, as línguas estrangeiras e as traduções desapareceram da revista. Segundo Hanes, um mínimo monolinguismo foi mantido com a presença de textos de pesquisadores como Rudolph Barth e Bertha Lutz. Com uma contribuição estrangeira escassa, agravada com o início do Regime Militar (1964) no Brasil, e uma redução de financiamento que quase levou à extinção do próprio Instituto, a partir do final da década de 1970, Chagas Jr. iniciou uma mudança estrutural interna, voltada para a língua inglesa. Hanes conta que “quando o Dr. Coura assumiu em 1980, ele relançou a revista, abrindo-a totalmente a contribuições externas. Isso trouxe um grande fluxo de artigos, por volta de um terço deles do exterior (aproximadamente 50% dos quais eram da América Latina, embora, estranhamente, poucos fossem em espanhol); foram publicados mais artigos em inglês do que em português pela primeira vez em 1982, e o primeiro editorial em inglês apareceu em 1984. Esta tendência já estava consolidada em 1996, data em que a revista foi publicada online (tornando-se parte da SciELO em 1997). Resumos em inglês se tornaram obrigatórios e o inglês se tornou a língua de facto da revista”. 

Formato multilíngue inicial das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (vol.1 1909) (Arquivo pessoal)

 Em entrevista, Hanes, que também atua como tradutor de textos acadêmicos para pesquisadores brasileiros, afirmou que “o inglês se tornou tão profundamente arraigado como língua franca, que as barreiras linguísticas para a disseminação científica estão se erodindo”. Para ele, o maior obstáculo atual para a pesquisa científica mundial é a indústria editorial em si. “A publicação acadêmica também foi transformada num dos negócios de mídia mais lucrativos, através de pacotes de assinaturas exorbitantes para universidades financiadas pelo governo”, afirma. Ele comentou ainda que a formação de tradutores para fins práticos é difícil de encontrar e poucos professores brasileiros se sentem confiantes o suficiente para tentar. “Uma vez que as competências científica e linguística são frequentemente combinadas, o Brasil poderia se beneficiar verdadeiramente de alguma forma de iniciativa multidisciplinar nesta área, por exemplo entre cursos de medicina e departamentos de língua/tradução”, afirma.

A pesquisadora Sabine Pompeia (Cognição Humana/Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp) comentou em entrevista que “mesmo que o inglês esteja correto e tenha sido revisto por um editor profissional, em sua maioria, os periódicos internacionais exigem que os manuscritos sejam submetidos à edição”, sendo que isso nunca aconteceu quando ela submeteu artigos em coautoria com pesquisadores internacionais. 

Esse talvez seja um reflexo da pouca proficiência em língua inglesa dos pesquisadores brasileiros, que em sua maioria recorrem ao tradutor automático ao realizarem uma autotradução de seus textos. A tradutora especialista pela Universidade de São Paulo (USP) Ana Julia Perrotti-Garcia atua como tradutora na área de Ciências da Saúde e apontou que há 10 ou 15 anos os profissionais tinham muito artigos rejeitados, pois tinham sido traduzidos pela máquina, e vinham pedir orçamentos para revisão do texto. Hoje em dia, ela afirma que médicos ou dentistas já buscam seu trabalho sabendo que ela é uma parceira nesse processo.

Carolina Dias, tradutora especializada em artigos científicos desde 1995, por sua vez, comenta que muitos pesquisadores ainda contratam pessoas sem formação em tradução para trabalharem em seus artigos, usam sites de tradução ou preferem contratar empresas, que, segundo ela, muitas vezes cobram um valor mais baixo, mas pagam pouco ao profissional. “Queremos ser valorizados como tradutores e sabemos que através de nosso trabalho facilitamos a visibilidade de pesquisas tão importantes que têm sido realizadas”, defende.

A intermediação linguística sempre será um problema complexo a ser discutido em suas diversas camadas. Como afirmou a professora do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Érica Lima, “o trabalho de tradução ainda é invisível e não valorizado e há um movimento de conscientização para uma maior visibilidade, principalmente na tradução literária. Já em outras, sobretudo as técnicas, ainda há uma ilusão de que os programas de tradução automática irão tomar conta de tudo”. 

Fato é que a língua inglesa continua em posição de relevância e um exemplo dessa hegemonia pôde ser constatada em um fato importante da atualidade, quando, em 2020, mesmo com a saída do Reino Unido do bloco europeu o inglês não foi abolido como língua oficial da União Europeia.

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Lívia Mendes Pereira é doutora em Linguística (Unicamp),