Nunca antes neste país houve novela tão lúgubre como Avenida Brasil. A marca da maldade aparece toda noite, as cenas costuradas para afligir a audiência. João Emanuel Carneiro já havia brincado com as fronteiras entre o “bem” e o “mal” no trabalho anterior. A Favorita demorou a esclarecer quem, afinal, era a vilã. Mas ali, o que surpreendeu, e virou marca-registrada do autor, foi o ritmo frenético. Cada capítulo abria e fechava um pedaço do enredo.
Desta vez, João Emanuel vai além na quebra de maniqueísmos. A ideia de pureza foi simplesmente suprimida logo na estreia da história, com a morte trágica do personagem de Tony Ramos. O ator, que durante décadas encarnou a honestidade na TV, agonizou entre soluços de sangue, sob chuva torrencial, atropelado depois de constatar que a mulher era uma pérfida. O herói com caráter, vimos, não passava de um banana. Para piorar, no último suspiro ajudou a armar o novo golpe da algoz.
Adriana Esteves vive a vilã barra-pesada, antológica. Agride crianças, humilha o amante/comparsa, engana meio mundo enquanto planeja enganar a outra metade. A novidade é que quase não há integridade nos demais personagens. Vide os galãs: o craque de futebol pulou a cerca no dia do noivado; o filho adotivo alterna pileques com rompantes machistas; o empresário boa praça faz rodízio de esposas. A mocinha de doce só tem o rosto – Débora Falabella foi outra boa sacada de escalação. Para engatilhar a vingança, largou o namorado e se finge de amiga da cunhada da vilã.
Todos mentem e trapaceiam no subúrbio emergente e consumista que serve de cenário à trama. Vale o lema “os fins justificam os meios” (ou “rouba, mas faz”, “rouba, mas pro partido”, “todos roubam”…). Avenida Brasil nos convida, ou nos coage, a torcer por quem faz o mal. Testa nossa ruína moral. Dói.
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[Melchiades Filho, da Folha de S.Paulo]