Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Acabou-se a História

Qualquer telespectador atento e exigente que venha acompanhando o canal History (que foi o History Channel até 2008), já notou a diferença entre a programação de alguns anos atrás e a atual: o canal não mudou só o nome, mas seu conteúdo; agora trata também de temas contemporâneos de interesse duvidoso e pouco relacionados com a História. Não temos mais História como tínhamos. Temos umas histórias: a história de dono da loja de penhores, a história do homem que fatia objetos improváveis com máquinas poderosas que cortam metal, a história da dupla de compra-e-vende quinquilharias em pequenas cidades americanas, a história da loja de tatuagens… A mais cruel de todas é a do massacre dos jacarés na Flórida. Muitas histórias. E muito pouca História, nos horários mais populares.

Encontraremos muita soldagem, modelagem, laminação, estampagem e outros processos industriais no canal. Shows de armas, consertos de automóveis e de motocicletas também são comuns. A História pouco a pouco foi deslocada de seu papel central e o canal agora apresenta também temas que guardam pouca relação com a mesma. Como taxidermia (técnica de empalhar animais) e produção de peças de metalurgia. Que relação esses assuntos têm com a História? O History de hoje parece mais um canal industrial interessado em anunciar e vender bens de produção e técnicas industriais do que um canal de História. O canal transformou-se porque a América mudou. O que aconteceu com o antigo History Channel guarda estreita relação com o que aconteceu com a indústria norte-americana.

O programa do fatiador frenético é uma clara exploração de interesses de fabricantes de ferramentas pneumáticas, hidráulicas e elétricas. Precisam pagar para obter uma boa vitrine na TV para anunciar produtos americanos que hoje enfrentam concorrência brutal dos fabricantes orientais. Os chineses e seus aliados na Ásia foram os beneficiários e estimuladores da desindustrialização dos Estados Unidos durante a recuperação econômica das administrações Clinton. Nesse período, os americanos perderam a última chance de reerguer sua economia por acreditarem que o século 21 seria o século da propriedade intelectual, assim como os séculos 19 e 20 foram os séculos da propriedade da terra e dos meios de produção industrial.

A perda de postos de trabalho

Os “gênios” do pensamento estratégico da era Clinton acreditavam que o importante era manter o controle da pesquisa e desenvolvimento de produtos de alta tecnologia dentro do país e que a manufatura tradicional não seria mais relevante para o desenvolvimento econômico. E continuaram a expandir o parque tecnológico, sempre de braços abertos às firmas e investimentos estrangeiros. Este modelo de desenvolvimento regional em planejamento urbano é conhecido por levar à desindustrialização. Ele não distingue firmas nacionais de companhias estrangeiras, num liberalismo autofágico que leva à fuga dos ganhos e das empresas locais para o exterior.

Desse modelo surgiu o Vale do Silício, com suas poderosas firmas de alta tecnologia que poderiam ter alavancado os Estados Unidos para uma posição de vantagem competitiva definitiva ao redor do mundo desde que o país pudesse reter boa parte da indústria tradicional no país. Mas os planejadores norte-americanos pensavam diferente: acreditavam que os empregos perdidos na manufatura local seriam compensados com vagas criadas nas indústrias de alta tecnologia e de tecnologias de informação A manufatura tradicional poderia ir para o estrangeiro, acreditavam eles. Foi um erro estratégico de proporções colossais.

Grande parte dos postos de trabalho na manufatura tradicional “migrou” para o Oriente e para países emergentes, deixando a maior parte da classe trabalhadora dos Estados Unidos em difícil situação. O número de empregos criados nos setores de alta tecnologia e na indústria de tecnologias de informação não foi suficiente para compensar as perdas que a manufatura tradicional acumulou. E se no History de hoje vemos tantas soldagens, maquinário e processos de fabricação industrial nos programas apresentados, a origem de tudo está nas enormes perdas de postos de trabalho na manufatura tradicional e na metalurgia americana.

Mercado impôs suas pautas

Vários shows do canal empregam mão de obra qualificada que ficou desempregada quando a metalurgia que florescia no leste e meio-oeste americano faliu. O orgulho industrial de Chicago e Detroit, com suas poderosas montadoras e suas indústrias de autopeças, mudou-se para a TV. Mas a grande maioria dos trabalhadores não teve a mesma sorte e teve que engolir as amargas ervas do desemprego quando a manufatura local migrou para o exterior.

Naquele momento (meados da década de 1990), grande parte das famílias americanas estava atolada até o pescoço em múltiplas hipotecas impagáveis. As imensas organizações de hipotecas americanas, a Fannie Mae, e seu irmão menor, o Freddie Mac, acabaram com uma dívida imensa com os bancos americanos, que não receberam de volta o dinheiro supostamente garantido pelo governo. As famílias não puderam pagar os valores astronômicos de suas hipotecas. Todo o dinheiro recebido por elas (que acumulavam hipoteca sobre hipoteca) foi para o consumo. Os bancos não conseguiram suportar o tamanho do rombo, iniciando a crise de 2008, que continua a aprofundar-se com a queda da Europa no novo desenho geopolítico global. Os americanos (e o mundo) acreditavam que suas organizações hipotecárias eram blindadas contra todas as ameaças. Erraram feio ao menosprezar a volúpia consumista do povo americano e ao superestimar a prudência tradicional de sua política econômica. O erro foi fatal. A América jamais seria a mesma depois deste momento crucial em sua história recente.

Temas sobre história contemporânea costumavam estar mais presentes no canal de História. O History tem um grande acervo de documentários de qualidade. O canal é parte do grupo AETN, que possui um dos maiores estoques de áudio-visuais do planeta. Formado por uma joint-venture que envolveu a Disney, a Hearst e a NBC em 1995, a sinergia entre tais atores midiáticos poderia ter levado o canal de história a outros rumos.

Mas o que aconteceu foi previsível: interesses do mercado impuseram suas pautas ao History e a enorme disponibilidade e diversidade de material histórico não ajudou a garantir uma grade de programação focada em História, que é sempre extremamente interessante: antiga, contemporânea, local ou estrangeira, ela sempre exerceu enorme fascínio sobre os homens, desde os tempos de Heródoto. Mas, infelizmente, o canal pago de História desceu de uma programação centrada nela e disciplinas conexas (como a arqueologia e a paleontologia) para um conteúdo misto no qual a História foi afastada para horários de pouca audiência. Dos 190 programas no Brasil, somente 80 tratam objetivamente de História de forma direta.

Atados à Time Warner

Nem mesmo as intervenções do jornalista Eduardo Bueno (que melhoraram bastante e hoje colocam em destaque a História do Brasil devidamente, sem vulgarizações ou comparações descabidas) são suficientes para melhorar o perfil da programação do canal, que está presente em todas as operadoras de TV paga. Mas agora pouco trata da matéria (ou o faz de forma desleixada e forçada). Acabou-se a história. O que fazer?

Portugal, através da Multicanal e da Liberty Global, conseguiu um acordo que garantiu maior presença de sua História na programação. Em Portugal não há History. O nome escolhido lá foi simplesmente Canal de História. Ponto para a língua e história portuguesas. Mas um ajuste similar ao que os lusos conseguiram seria improvável aqui. O HBO, propriedade da Time Warner, é o programador do History e faz parte de um conglomerado gigantesco de mídia que está entre as primeiras 100 empresas poderosas do mundo.

Apesar de combalida e mal das pernas, a Time Warner é muito mais poderosa que a Liberty Global e suas associadas na Península Ibérica, que têm anos de prática na região e operam através da Chello Media e da Multicanal, especializada em canais temáticos. Negociar com empresas menores e especializadas na região permitiu a Portugal uma garantia de maior presença da História local na programação do canal. Mas tamanho apenas não explica tudo: a Liberty está, no momento, numa situação econômica muito mais confortável que a Warner. Está menos submetida a necessidades de recuperar receitas e mais aberta a inovações e programações customizadas regionalmente.

A natureza dos parceiros diferenciados associados para programar o canal acabou por determinar canais distintos nos dois lados do Atlântico. Na América Latina, estamos atados à Time Warner, sua decadência econômica, sua mentalidade corporativa antiquada, centralizadora e que vê a América Latina de forma monolítica, sem diferenciar a América hispânica do Brasil. A política uniforme e rígida do HBO e da Time Warner alinhou nossas grades de programação à matriz americana.

Documentários na TV paga

Há gente que acredita que deveria ser obrigatório o conteúdo nacional nas programações dos canais estrangeiros. Eu não concordo com meus companheiros que defendem a regulação da mídia eletrônica neste ponto. Acredito que se uma pessoa paga para receber um determinado conteúdo, obviamente deverá receber tal conteúdo, e não outro. Se ela quer assistir programação histórica internacional em vez de História do Brasil, isso é lá com ela e sua operadora e eu não tenho nada a ver com isso. Nem o Estado brasileiro.

Mas há quem pense que parte da programação paga deveria ser obrigatoriamente nacional. Discordo porque não estão a respeitar como deviam a soberania do indivíduo, mas compreendo seu ponto de vista: existe espaço para produção nacional em vários canais estrangeiros de documentários. Sejam eles ligados a História, Geografia ou qualquer outra área temática ou científica. A quantidade de tempo perdido em programas que guardam uma relação apenas lateral com a História (ou Geografia e outras disciplinas) abre espaço para quem defende a obrigatoriedade da exibição de conteúdo nacional porque o mesmo fenômeno acontece nos outros canais de documentários: a alienação do conteúdo original em função de outros mais populares e menos ligados à proposta original com que os canais começaram a operar.

As operadoras não estão a prover o conteúdo prometido porque não há nenhum órgão que aponte a elas o caminho de volta aos temas originais de sua proposta quando começaram a atuar no país. Em outras palavras, estão a romper o contrato original com seus clientes. Prometem um serviço e entregam outro. Para quem quer ver a regulação presente na mídia eletrônica, isso é um prato cheio.

Pensando bem, há espaço de sobra para a produção nacional nos canais de documentários na TV paga. Mas estará em questão a capacidade dos produtores locais de prover os canais de documentários com programação que ao mesmo tempo informe e divirta com seus próprios recursos. Não creio que isso seja possível sem a presença do Estado. Não temos uma política firme de incentivo aos documentários nacionais comerciais e muito pouca tradição na área. Mas essa já é outra história.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]