Quem assistiu ao programa Observatório da Imprensa na terça-feira (5/6), na TV Brasil, pôde testemunhar a longa entrevista concedida por Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops (a polícia política dos anos de chumbo), a Alberto Dines. O assunto já não é novidade porque está no livro Memórias de uma guerra suja, onde este mesmo personagem relata aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros sua ativa participação num dos mais tenebrosos episódios da nossa história, a ditadura militar que se instalou a partir do golpe de 1º de abril de 1964 e vigorou até meados dos anos 1980.
O que gostaria de ressaltar não é o avanço do direito ao esclarecimento sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos. Está aí a Comissão da Verdade, em cujos componentes depositamos nossa confiança para que nos revelem os crimes e os excessos cometidos, sobretudo por quem detinha na época o poder. O que destaco é a atuação desse jornalista que persiste vigoroso em seu trabalho. Dines viajou a Vitória para entrevistar o tal personagem, como viajaria a qualquer outro lugar se houvesse a perspectiva de fazer um programa esclarecedor e sempre a serviço do cidadão.
Nos dias de hoje, quando impera a busca desenfreada pela audiência a qualquer preço, o programa Observatório da Imprensa tem atuado no sentido de colocar em questão a própria imprensa, isto é, os próprios meios de comunicação, incluindo aí as poderosas emissoras de TV. É sempre bom destacar o papel da TV Brasil, pois se trata de uma emissora pública que procura trazer à sua audiência programas de natureza cultural, plenos de apuro e sofisticação.
Ardilosas estratégias
Vivemos num século dominado pelo consumo exacerbado. Por isso, muitos jornais, revistas, rádios e TVs existem quase somente para corroborar essa ideologia. O Observatório, no entanto, fazendo crítica à imprensa, mostrando que publicações, rádios e TVs não devem se colocar como empresas comerciais quaisquer, traz ao espectador a consciência de que informação digna não é mercadoria que se fabrica de qualquer maneira e se vende a qualquer preço.
O ponto forte do programa não foi apenas ouvir da própria voz as atrocidades cometidas pelo ex-delegado do Dops, mas também mostrar que, durante os anos em que estiveram no poder, não apenas os militares se beneficiaram, mas muitos civis sob a proteção deles abocanharam sua parcela de lucro sem precisar dar satisfação ao povo. Daí a dificuldade de se esclarecer os crimes da ditadura. Para muita gente, seria melhor que tudo ficasse esquecido. Como revelar a verdade do período se quem mais colaborou com os militares encontra-se hoje na crista da onda da audiência? O entrevistado deu nome a vários profissionais de imprensa e também a jornais, rádios e emissoras de TV. Árdua tarefa a de Dines, mas ele é um obstinado e apaixonado repórter. Seu programa continua a mostrar a qualidade que é possível existir mesmo numa pequena parcela da imprensa brasileira, incluindo aí a própria TV.
Assunto muito discutido atualmente, mas de pouco empreendimento, é a leitura. A própria TV gosta muito de anunciar que o brasileiro lê pouco. Mas, uma vez que as mesmas emissoras apelam para nos manter horas a fio hipnotizados ante suas programações, como a leitura seria possível, principalmente considerando a enorme audiência entre a população de baixa renda? Percebem-se ardilosas estratégias que objetivam manter o espectador com a TV ligada durante o máximo de tempo. Há espetáculos esportivos durante todo o dia, uma enxurrada de notícias desnecessárias, reality shows, passando inclusive por telenovelas e programas religiosos. Às vezes, o espectador sente-se, ainda que inconscientemente, participante de uma irmandade da qual não se pode desligar porque, caso o faça, mergulhará num estado de mais profunda solidão. Com essa questão parece que me desviei do assunto inicial, mas tem tudo a ver.
Algo de podre
Por mais importantes que sejam todos os meios de comunicação, quando se deseja transmitir algo deveras importante recorre-se ao livro. E foi isso que aconteceu. O torturador arrependido, em crise de consciência por causa de sua religiosidade tardia, recorreu a dois jornalistas que acharam melhor publicar sua confissão em livro.
Não esperem da grande imprensa, inclusive da TV comercial, grande destaque à questão. Não pela falta de importância histórica do assunto nem porque um país com grande público leitor poderia derrubar a audiência das TVs. Mas porque existe algo de podre, difícil de levar para longe da porta da própria casa.
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[Haron Gamal é professor, Rio de Janeiro, RJ]