Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A originalidade de Que rei sou eu?

Nunca houve telenovela igual. Reexibida hoje no canal Viva, vinte e três anos depois, vale a pena ver de novo.

“Que rei sou eu, se tenho generosidade?/Que rei sou eu, com fé e honestidade?/Se desconheço autoridade sem vaidade, que rei sou eu?/Eu só sou rei porque o rei de lá morreu/Que rei sou, se não acredito na maldade/Que rei sou eu, se tenho tanta amizade?/Com a ferocidade da dignidade, que rei sou eu?”, diz a letra da canção que sonorizava muitas das cenas em que o mendigo analfabeto, beberrão e inocente Pichot, personagem de Tato Gabus Mendes na novela Que rei sou eu?, metamorfoseava-se no Rei Lucien, monarca cruel e sanguinário do reino de Avilan, à custa de uma fraude que impediu a coroação do verdadeiro dono do trono – o líder revolucionário boa-praça Jean Pierre (Edson Celulari), que de súbito se descobre príncipe herdeiro com a abertura do testamento do Rei Petrus II, morto no início do folhetim.

A letra de Eduardo Dussek e Luiz Carlos Góes faz da conjunção “se” a condicional de virtudes do rei em oposição a características deletérias associadas atavicamente aos monarcas. Tão atávicas que Pichot, à Rousseou, virou Lucien depois de emergir à civilização com as lições de seu tutor e mentor da fraude, Mestre Ravengar, o bruxo da corte que Antônio Abujamra, estreando em papel de destaque, encarnou como que levando ao paroxismo as lições do diretor russo Stanislavsky, segundo o qual o ator deve construir naturalmente suas personagens, sem prejuízo às suas idiossincrasias. (Antes, Abujamra, reconhecido diretor de teatro, fizera umas pequenas participações na televisão).

Não se trata de uma telenovela de época

Isto de os símbolos monárquicos continuarem a exercer enorme fascínio sobre o imaginário social, a ponto de magnetizar meio mundo com casamentos reais e jubileus, transforma Que rei sou eu? de reprise diária no canal pago Viva em lembrança de que, sim, reis e nobreza já foram, aos olhos de hoje, maus, muito maus. Ou não estaria exatamente na esfinge absolutista do passado, no controle sobre a vida e morte dos súditos, parte da explicação desse fascínio?

Porém é de outro tipo de maldade, bem mais próxima ao Brasil que aboliu a monarquia faz mais de cem anos, que trata a novela escrita por Cassiano Gabus Mendes com colaboração de Luis Carlos Fusco e direção de Jorge Fernando, Mário Márcio Bandara e Fábio Sabag. Exibida no horário das 19h entre 13 de fevereiro e 16 de setembro de 1989, Que rei sou eu? ocupa uma posição singular na história das telenovelas brasileiras. Situa-se historicamente entre os anos de 1786 e 1789, na transição da Idade Moderna, marcada pelos Estados absolutistas comandados com mãos de ferro pelos monarcas, para a Idade Contemporânea, inaugurada pela Revolução Francesa – que, naquele ano de 1989, tinha seu bicentenário e seus significados comemorados em todo o Ocidente. Para reconstituir esse cenário, a Rede Globo ergueu um castelo na cidade cenográfica montada para as gravações no terreno onde, anos depois, seria construído o Projac, Centro de Produção em Jacarepaguá. Divulgou-se, à época, que seria a produção mais cara da emissora, algo em torno de 12 milhões de dólares.

Que rei sou eu? foi chamada de novela capa-e-espada, numa alusão ao gênero literário cuja ação se passa na Europa da Idade Contemporânea tendo como protagonista o espadachim (swashbuckler), um tipo de herói aventureiro com o senso de justiça na mesma proporção da tendência a envolver-se em dramas, peripécias amorosas, bebedeiras e brigas. O romance Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, é a obra capa-e-espada mais famosa. Mas, e aí está toda a diferença, não se pode classificar Que rei sou eu? de telenovela de época, que procura reproduzir os signos do momento histórico retratado – o que acabaria por torná-la tão realista quanto as outras cujo enredo se situam na contemporaneidade.

Contextualização histórica é pano de fundo

Em telenovela, realismo significa a verossimilhança que permite ao telespectador projetar na tela situações cotidianas com as quais ele se identifica: dramas, dilemas e conflitos ligados à subjetividade humana, às relações de alteridade. A ênfase, portanto, está no indivíduo, no personagem – o que aproxima o público e é facilmente inteligível, de modo que ele possa acompanhar o desenrolar da história sem que esta lhe exija grande tirocínio ou esforço cognitivo. O verossímil é a base do melodrama, o que estrutura o eixo das telenovelas. Porém essa verossimilhança não implica ausência de contexto social sobre o qual a trama se desenvolve e as personagens se movem – mas esse contexto está em nível secundário.

Atualmente no ar, duas telenovelas (Cheias de Charme e Avenida Brasil), por abordarem o universo da nova classe média brasileira, levantaram a discussão sobre a influência da classe C na linguagem de televisão. (Aqui, uma breve digressão é necessária: em obra de ficção, o realismo, por mimético, deve representar o real, e não reproduzi-lo, ser sua expressão fiel; o ficcional comporta doses de irrealismo mesmo buscando o verossímil. Por vezes, algumas críticas publicadas na imprensa ignoram isso, ao apontar que determinadas cenas e diálogos seriam difíceis de acontecer na vida real.)

Nas produções de época, o deslocamento temporal e estético em relação ao presente não desarticula essas situações melodramáticas que magnetizam as massas, fazendo-as identificarem-se com enredos que se passam em outros contextos históricos. O enorme sucesso da adaptação do livro Escrava Isaura, em 1976, um dos maiores sucessos da televisão brasileira e até hoje exibida em outros países, é exemplo mais eloquente dessa projeção: no Brasil escravocrata do século 19, um senhor de escravos (Rubens de Falco) sente-se atraído obsessivamente por uma escrava branca (Lucélia Santos), que luta para libertar-se de sua perseguição e viver sua verdadeira paixão. A contextualização histórica é o pano de fundo da história marcada por atração obsessiva, opressão e sofrimento da jovem mocinha, amores interditos, busca por liberdade.

Exaltar o passado em demasia é sinal de mal-estar

Assim é que, para retratar em minissérie a vida de nomes históricos da música popular brasileira, como Chiquinha Gonzaga (também em reprise no Viva neste mês de julho) e Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, o foco das ações estava na vida pessoal dessas personagens, seus relacionamentos, suas brigas, ficando em segundo plano, ou como trilha sonora, a questão propriamente musical, a importância deles para a cultura popular etc.

Isso não quer dizer que telenovelas e minisséries, de época ou contemporâneas, não façam referência explícita à situação social, política e econômica, para além do enfoque comportamental, psicológico, das personagens. São vários os exemplos que podem ser invocados, desde O Bem-Amado (1972), com Odorico Paraguassu, a Vale Tudo (1988), com a icônica e inesquecível Odete Roitman (Beatriz Segall), e Rei do Gado (1996). A cena em que, nesta última, o senador Caxias (Carlos Vereza) discursa para o Congresso Nacional vazio é um dos momentos mais substantivos da televisão brasileira nas últimas duas décadas.

(A propósito: a alta audiência do canal Viva, que reprisa antigos programas, telenovelas e minisséries da TV Globo, além de produções internacionais, merece um estudo mais aprofundado: quando começamos a exaltar o passado em demasia, achando-o muito superior ao presente, é sinal de mal-estar na civilização, sintoma de que algo está ou nos parece disfuncional)

Aproximação entre Brasil e Avilan

Então, no que consiste a originalidade de Que rei sou eu?

Que rei sou eu? é singular não só porque inverte a equação das telenovelas, tornando secundárias as características do melodrama tradicional –, mas também e sobretudo porque, ao mesmo tempo que põe uma lupa sobre o contexto, é uma sátira alegórica: com o efeito crítico devastador de que só o humor é capaz, fala de um país (o Brasil de 1989 e, por que não?, o de hoje também) por meio de outro – um reino situado na Europa às vésperas da Revolução Francesa, cujos acontecimentos serviram-lhe de simulacro. Outras telenovelas, como Roque Santeiro, fizeram sátira alegórica; mas havia proximidade entre o universo representante e o universo representado, como na Asa Branca da Viúva Porcina e do Sinhozinho Malta, uma alegoria das crenças e dos tipos do Brasil profundo. Que rei sou eu? une dois universos distantes: um país latino-americano de fins do século 20 e um europeu do século 18.

O Brasil de que se fala é o do fim do governo Sarney, o primeiro da Nova República, instituído depois do ciclo de governos militares pós-64: país da corrupção generalizada, da inflação descontrolada, da fragilidade das instituições, da incompetência das autoridades, das intrigas e futricas palacianas, da elite insensível, da miséria e da pobreza, das válvulas de escape à opressão cotidiana, da luta de um grupo de idealistas por mudanças profundas. Mas as personagens em cena são reis, rainhas, princesas, conselheiros e nobres de peruca e faces empoadas, todos desprovidos de quaisquer virtudes morais e nababescamente suciados no palácio medieval; burgueses, camponeses, revolucionários que se insurgem contra a monarquia e as condições de vida, duelos de floretes, bobo da corte.

Algumas cenas – como a guilhotina que sempre falha na hora de decapitar condenados, o que os leva à soltura e o povo reunido em praça pública, ao delírio – lembram comédia pastelão. E, para deixar mais explícita a representação alegórica, Cassiano Gabus Mendes recorreu a notícias que saíam nos jornais naqueles meses de vinte e três anos atrás – permitindo ao público a aproximação imediata entre Brasil e Avilan que hoje, àqueles que não viveram o período ou não se lembram dele, pode parecer sutil, quiçá imperceptível à nova geração, à medida que os fatos vão-se amarelando junto com os jornais que os fizeram conhecidos.

Cena de Naji Nahas foi cortada

Como os planos econômicos que, no país pré-Real, cortavam os zeros da moeda como que querendo cortar os dígitos da inflação. Por isso, a moeda de Avilan, o “ducato”, em seus primeiros capítulos, perde três zeros e vira “duca” – mudança quase simultânea à que, no Brasil, o Plano Verão de Maílson da Nóbrega eliminou três zeros do Cruzado e o transformou no Cruzado Novo, em janeiro de 1989. Das paradas de sucesso, Avilan importou do Brasil a lambada, gênero tropical, predecessor do axé, que fez a corte trocar o tradicional minueto pelos seus requebros abaixo da linha do equador da cintura.

Ou como, numa cena impagável, Luiz Gustavo, em participação especial travestido de Charles Miller, o filho de escocês que trouxe o futebol ao Brasil, apresenta sua invenção aos conselheiros da rainha, aconselhando-os a adotar o esporte no reino porque, além de distrair o povo como ópio, dava prestígio aos presidentes das federações e aos demais cartolas, que poderiam lucrar com a venda de jogadores! Para mostrar como estes se vestiam e faziam com a bola, Roberto Dinamite, ainda em atividade como atleta, entra em cena com a camisa da seleção brasileira que ostentava três estrelas, a última conquistada em 1970. “Esta camisa não ganha nada há muito tempo”, diz Charles Miller, quer dizer, Luiz Gustavo. Bem, se o conselho pode continuar válido, as estrelas em nossa camisa já somam cinco.

Há muitas outras cenas que poderiam ser citadas. Uma, porém, entra no rol por não ter ido ao ar – e por sinalizar os limites da sátira político-social em produtos voltados para a massa. Onipresente no noticiário da época pela acusação de ter quebrado a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, o investidor Naji Nahas seria representado por Chico Anisío como o nobre estrangeiro Taj Mahal, chamado a Avilan para esclarecer problemas na Bolsa do reino. Como os advogados de Naji Nahas ameaçassem pedir direito de resposta, a cena foi cortada.

No mundo das telenovelas trata-se de algo inédito

Em entrevistas à imprensa, Cassiano Gabus Mendes dizia que a ideia de Que rei sou eu? fora apresentada à emissora cinco anos antes, nos estertores da ditadura, mas que só depois do ciclo de governos militares a Globo resolvera tirá-la da gaveta. Essa história é lembrada hoje em depoimento do diretor Jorge Fernando ao Canal Viva. No entanto, a disposição da emissora em produzir uma sátira alegórica do Brasil com esse título remonta aos anos 70. O Estado de S. Paulo de 18 de outubro de 1977 noticia que a Globo desistira de produzir Que rei sou eu? para o horário das 22h. O autor Bráulio Pedroso já havia escrito 20 capítulos. A história se passaria num país fictício organizado como uma escola de samba. A reportagem deixa entrever que o motivo da desistência fora a censura, que a Globo obliquamente não confirmou, segundo o jornal.

Cassiano fora um dos pioneiros da TV no Brasil, na qual desempenhou várias funções. A que lhe deu mais reconhecimento foi a de autor de telenovelas, em que sobressaiu como renovador de linguagem. Autor de marcos do gênero como Beto Rockfeller e Anjo Mau, nos anos 70, e Ti Ti Ti, nos 80, pai dos atores Tato (o Rei Lucien) e Cássio Gabus Mendes e cunhado de Luís Gustavo (o Beto Rockfeller), faleceu em 1993, aos 64 anos. Guardaria para o último capítulo a maior surpresa de Que rei sou eu?. O povo de Avilan toma o poder e invade o palácio real, tal qual a tomada da Bastilha. Guardas que o protegiam tombam mortos, a rainha foge para o exílio, alguns nobres são assassinados e o falso Rei Lucien, em duelo com Jean Pierre, morre com a espada encravada no peito, numa cena de quatro minutos. “A ideia, em matéria de espetáculo para o grande público, está longe de ser original. Até mesmo o último filme dos Trapalhões, a Princesa Xuxa, tem um desfecho semelhante. No mundo das telenovelas, porém, trata-se de algo inédito. Até há pouco, uma revolução popular no vídeo era algo tão impensável quanto Xuxa fazer uma cena convincente como atriz”, escreveu a revista Veja.

Avilan era o Brasil

Conselheiro Bergeron (Daniel Filho), que por ser o único a preocupar-se com o povo foi mandado à guilhotina – que, como sempre, falhou – pelos seus pares, e que depois de sobreviver ao espancamento de carrascos juntou-se aos rebeldes, aparece à entrada do palácio. Ao lado de Madeleine (Marieta Severo), esposa encarcerada por expressar ideias avançadas sobre os direitos das mulheres, Bergeron discursa:

“Que ninguém se olhe no espelho hoje e diga: eu sou herói! Vencemos uma grande batalha, mas não somos heróis de nada! Para chegarmos lá é preciso ainda uma grande caminhada, uma grande luta que se segue para acabar com a demagogia, com a exploração dos trabalhadores e com a corrupção que corre desenfreada neste país há muitos e muitos anos. E nesta luta usamos a mais terrível das armas: o voto. Porque quando escolhemos por voto, nós somos os responsáveis somos nós que estamos indo para o poder. Portanto, temos de estar atentos para cobrar as promessas feitas e aí ajudar na redenção do país. E será uma nova época para nós, um novo dia para todos. Temos de estar atentos para cobrar mais as promessas feitas, e aí então será uma nova época para nós, um novo dia para todos. Olho no voto, meu povo!”

Ovacionado, Bergeron beija Madeleine. A cena corta para Jean Pierre e sua namorada, Aline (Giulia Gam), à sacada. Ele, que finalmente passa a reinar depois da Revolução, fala à multidão. É a penúltima e mais importante cena de toda a telenovela:

“Vencemos, minha gente! Temos o domínio da coroa! Estamos saindo da minoridade. A partir de hoje, Avilan será um novo país, porque todos nós vamos reconstruir. Agora, aqui, vamos instaurar a dignidade e a honra. Meu lema: justiça! Justiça para os que trabalham, justiça para os miseráveis – e também justiça para aqueles que exploram o povo. Não vai ser fácil, vamos enfrentar muitos obstáculos pela frente, mas eu vou acabar com a ganância nas elites de Avilan e ninguém vai mais explorar o trabalho do povo. A justiça será para todos, e principalmente para aqueles que sempre trabalharam e doaram seu sangue, seu suor, sua juventude nos campos e nas cidades e nunca tiveram isso reconhecido. É a justiça! A justiça: o único caminho para a maioridade. Eu quero que todos vocês agora, camponeses, operários, todos vocês, gritem comigo: ‘Viva o Brasil!… Viva o Brasil! Viva o Brasil! Viva o Brasil! Viva o Brasil!’”

A alegoria dá lugar à representação concreta; a sátira, ao ambiente de emoção e chauvinismo. Não cabia humor, mas a seriedade para mostrar o real que, finalmente, mostrava-se a todos, sem os elementos alegóricos, dissipando as dúvidas que ainda poderiam existir: Avilan era o Brasil.

A “irresponsabilidade da novela”

A efeméride da Revolução Francesa não foi o que de mais importante se registrou em 1989. Foi um daqueles anos que ainda não terminaram, tomando por paráfrase o título do livro de Zuenir Ventura sobre outra data mítica, 1968. Uma sucessão de acontecimentos mundiais acelerou a marcha da história, reordenou as forças políticas, sociais e econômicas e obrigou os intelectuais honestos a um exame de consciência: queda do Muro de Berlim, Revoluções no Leste Europeu, massacre da Praça da Paz Celestial.

No Brasil, foi a primeira eleição para presidente em 39 anos, depois do golpe militar de 1964. (Não à toa, Avilan também teria sua primeira eleição para primeiro-ministro, uma confabulação da corte para distrair o povo.) O primeiro turno aconteceu em 15 de novembro, com os grandes figurões da política brasileira; o segundo turno, entre Collor e Lula, foi em 17 de dezembro. Os últimos capítulos de Que rei sou eu?, portanto, foram ao ar já em início da campanha eleitoral. O derradeiro foi exibido na sexta-feira 15 de setembro (reprisado no dia seguinte), coincidindo com o primeiro dia do horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão. Daí ao dia de votação no primeiro turno, dois meses haveriam de passar; ao segundo, três meses – tempo suficiente para que a sátira perdesse seu poder de persuasão, em caso de telenovela possuir esse poder de incitar o público a posições políticas extremadas.

Na edição de 15 de setembro, ao noticiar o fim da telenovela, reportagem do caderno IlustradadaFolha de S.Paulo registrou esse temor por parte de setores militares: “Pela ousadia em mexer com revolucionários e tentativas de tomadas de poder, a aventura capa-e-espada de Gabus Mendes não descia goela abaixo de setores mais conservadores da sociedade. Representantes do primeiro escalão de uma das forças militares brasileiras comentavam semanas atrás num restaurante da cidade a ‘irresponsabilidade da novela, que estava instigando o povo a pegar em armas’”.

“Reprise surpreendente, inoportuna e estéril”

Porém, uma decisão da Rede Globo fez a sátira alegórica permanecer na grade de programação até o segundo turno. Que Rei sou Eu? foi reprisada um mês depois que terminou num compacto de setenta capítulos, entre outubro e dezembro de 1989, no horário entre 16h e 18h denominado Sessão Aventura – anos depois trocado pelos sarados de Malhação, que ainda estão no poder. Não foi – e não seria depois ao longo destes vinte e três anos – em Vale a pena ver de novo, um dos pilares da programação vespertina da emissora, que ia ao ar imediatamente antes. O sucesso de Avilan entre as crianças, o fiasco do programa Juba & Lula, que era para levantar a audiência de Sessão Aventura mas só durou um mês, e a concorrência do programa da apresentadora Angélica na Rede Manchete, voltada para o público infantil, justificaram que mais um folhetim entrasse na grade de programação.

A reexibição de Que rei sou eu?, mantendo-a no ar por dez meses e meio em ano eleitoral histórico, alimentou, à esquerda e à direita, a suspeita de que a Rede Globo se utilizava da telenovela para infundir mensagens subliminares. Se havia insatisfação de conservadores temerosos de que o assalto ao palácio se tornasse assalto ao Planalto, houve quem visse em Jean Pierre, adônis apolíneo portador de virtudes morais e enunciador de discurso de combate à corrupção e à pobreza, a efígie de Fernando Collor, que se apresentava como “o caçador de marajás”. Reportagem da Folha de S.Paulo na edição dominical de 12 de novembro, a três dias do primeiro turno, intitulada “Eleição transborda para programação normal” e assinada pelo repórter e crítico Nelson Pujol Yamamoto, asseverou:

“Sem dúvida, a emissora costuma reprisar seus sucessos, mas depois de um intervalo de dois ou três anos. Ocorre que a novela havia acabado pouco mais de um mês antes que a Globo decidir que valeria a pena vê-la de novo. As chamadas da reprise convidavam: ‘Conheça os marajás do Reino de Avilan’. (…) ‘Do ponto de vista do reaproveitamento do texto no mercado, acho esta reprise surpreendente, inoportuna e estéril’, lamenta Cassiano Gabus Mendes, 60, autor da novela.”

Ele concorda, no entanto, que seu roteiro está atrelado ao momento político nacional, em que todos os candidatos prometem limpar o Reino de Avilan. “Talvez as pessoas associem Jean-Pierre a Collor por ele ser o candidato mais moço e o que mais impressiona”, pondera Gabus Mendes. De qualquer modo, não deixa de haver forte identidade entre o voluntarioso Jean-Pierre (…) e a postura principesca que o candidato Collor de Mello impõe a seus pronunciamentos, a ponto de se referir ao Brasil como “este país que está às vésperas de sua libertação”.

A reestreia de Que rei sou eu? foi em 23 de outubro; e o último capítulo, reexibido dias depois da eleição de Collor, na sexta-feira 29 de dezembro. Paralelamente à Que rei sou eu?, a então novela das oito foi O Salvador da Pátria, no ar entre janeiro e agosto. A história de Sassá Mutema (Lima Duarte), boia-fria analfabeto alçado a político poderoso de sua cidade, foi vista como exaltação da vida de Lula.

Em verdade, a sátira alegoria da telenovela, por sua panorâmica abrangente sobre os piores vícios da elite política nacional, poderia servir a qualquer um dos vinte e três candidatos que disputaram o primeiro turno e a qualquer ideologia, independentemente de seu lugar no espectro político – como lembrado por Cassiano. No tom dicotômico de esquerda versus direita que marcou o segundo turno, ambos os candidatos poderiam ver-se no espelho de Que rei sou eu?: Collor, pela compleição física de Edson Celulari e pela retórica moralizante de sua personagem; Lula – o de 1989, treze anos antes da Carta ao Povo Brasileiro –, pelo contexto de ruptura social e política, pela tomada do poder por um representante do povo que combaterá a miséria e a exploração enfrentando a ganância das elites (releiam acima o discurso de Jean-Pierre).

Richelieu Rasputin Golbery voltara

Falou-se da penúltima cena, a de exaltação ao Brasil. E como foi a última? Mestre Ravengar, disfarçado de rebelde em meio à multidão eufórica, aproxima-se de Corcoran, o Bobo da Corte (Stênio Garcia) infiltrado nela. Diz-lhe que tem boas ideias, que pode contribuir para o novo reino porque o rei, para tomar uma decisão, precisa ter muitas à sua frente. Com isso ele, Corcoran, subiria no conceito do novo reinado. O Bobo da Corte, que de bobo nada tinha, sorri com ar malicioso de aprovação. Pede a Ravengar que passe no palácio no dia seguinte. Pergunta-lhe o nome, e ele responde: Richelieu Rasputin Golbery. Os acordes iniciais de “O Guarani” – os mesmos que anunciam a Voz do Brasil – soam e o plano da cena fecha nos olhos do bruxo.

Richelieu Rasputin Golbery é a junção do nome de três figuras importantes, as duas primeiras mundialmente; a última, em nível nacional. Cardeal de Richelieu (1585-1642), duque e político, foi chefe do Conselho de Estado, arquiteto do absolutismo francês e eminência parda da monarquia. Homem de grande prestígio e poder num contexto turbulento de guerras religiosas. Grigori Rasputin (1869-1916), místico e alquimista, foi uma espécie de Ravengar do Império russo no período final da era dos czares, no início do século 19. Figura controvertida e polêmica, sua história ainda desperta curiosidade e fascínio. Provavelmente, foi a inspiração de Cassiano para a personagem de Abujamra. Golbery do Couto e Silva (1911-1987), militar e estrategista político brasileiro, exerceu grande influência nos círculos militares e civis a partir dos anos 50. No governo militar, foi eminência parda do governo Geisel (1974-1978) e do início do governo Figueiredo (1979-1984). Era conhecido como “O bruxo” pela sua habilidade em fazer articulações. O jornalista Elio Gaspari, em seus volumes sobre a ditadura militar, chamou-o de “O feiticeiro”.

À sombra ou às claras nos bastidores, influenciando líderes e promovendo intrigas e articulações, Richelieu Rasputin Golbery voltara. Ele sempre volta, seja com que nome for.

Por tudo isso, vale a pena ver de novo.

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[Bruno Filippo é jornalista e sociólogo]