Personagens têm religião, agem movidos pela fé e colaboram, com suas crenças, para a carpintaria dramática de obras de ficção na TV. Menos comum é uma novela se construir quase inteiramente em função da espiritualidade. Amor Eterno Amor, exibida pela Globo no horário das 18h, não é a primeira a investir neste filão, mas talvez seja aquela que, no afã de não desagradar a ninguém, tenha ido mais longe na proposta. Não há um capítulo da trama que não ofereça lições de fé, misticismo e autoajuda de caráter religioso. Com frequência, os 35 minutos de um episódio comportam espaço para três ou quatro pílulas espirituais diferentes.
O capítulo de terça-feira (10/7) dá uma boa ideia do balaio místico proposto pela autora Elizabeth Jhin. São lições sobre temas tão variados quanto almas gêmeas, mantras, regressão e espiritismo. Quando Miriam, a mocinha da história, reclama com a amiga que perdeu as esperanças de conquistar o herói Rodrigo, ouve que “nunca é tarde demais”: “Só se vocês estivessem mortos, mas, mesmo assim, eu tenho minhas dúvidas porque acredito em almas gêmeas.”
Os vilões ou personagens ambíguos não têm fé. É o caso de Elisa, rival de Miriam na disputa pelo coração de Rodrigo: “Acho tão lindo essa coisa de ele ser assim todo espiritualizado. Eu não sou assim, mas acho lindo”, diz para o vilão Fernando, com quem está conspirando.
Um “showroom da fé”
Tudo é pretexto para Elizabeth Jhin ensinar algo. Na Redação da revista, a editora Laura mostra as fotos que vão ilustrar uma reportagem sobre “objetos, orações, enfim, esses apoios de fé que as pessoas usam no dia a dia, nos momentos de aflição…”
Personagem central na trama, a menina Clara tem poderes especiais, vê o futuro e conversa com espíritos. Na terça-feira, ela foi apenas evocada. “Rodrigo fez uma espécie de oração, de mantra. Não quero que você me ache uma maluca, mas Clarinha estava queimando em febre e melhorou”, diz Miriam para Pedro, colegas jornalistas. Pedro responde: “Rodrigo recitou um mantra de cura para a Valéria que eu sempre carrego comigo. É forte. Pode ser esse? ‘om tare, tutare, ture soha’.” Miriam diz que o mantra recitado era em português. Uma colega, então, auxilia a dupla: “Mentira que dois jornalistas famosos como vocês não conheçam o ‘Hooponopono’. É uma prática milenar de origem havaiana. É como se fosse uma conexão com a divindade, sabe? É bem legal para proteção, para cura.”
Em outra cena, o herói Rodrigo está no consultório da terapeuta Beatriz. É dia da primeira sessão de regressão. Ela ensina: “Relaxa. Você provavelmente não vai conseguir voltar à sua infância nesta primeira sessão.” Para completar, numa das cenas finais, a vilã Melissa chega em casa e é informada pela empregada de que um certo Zenóbio telefonou. “Vai para o inferno você, o Zenóbio e o raio que o parta!” Na verdade, trata-se do espírito de um personagem, incorporado por outro, que atormenta a vilã.
Como suas pílulas de espiritualidade e misticismo, Amor Eterno Amor é uma espécie de “showroom da fé”. Para ateus ou para quem simplesmente não se interessa pelo assunto, é um suplício.
***
[Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo]