Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cumplicidade sem culpa?

Com gosto de prato frio e vingança requentada, desde domingo (15/7), por aí afora se comenta a entrevista concedida pela ex-primeira-dama Rosane Brandão Malta à jornalista Renata Ceribelli no programa Fantástico, da Rede Globo. Entre 1990 e 1992, a dupla Rosane Collor de Mello e Fernando Collor de Mello reinou soberbamente e soberanamente. Escândalos subsequentes ou paralelos perpetrados por verdadeira gangue, comandada por Collor e Paulo César Siqueira Cavalcante Farias, ou PC Farias (assassinado posteriormente ao lado da namorada Suzana Marcolino, num crime nunca solucionado), foram decisivos para o impeachment do então presidente. Adendo: as primeiras e mais graves denúncias vêm a público pela voz do irmão, também já falecido, Pedro Affonso Collor de Mello.

A inacreditável volta de Collor ao cenário político nacional como senador da República e aliado de primeira grandeza de antigos detratores, a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva e da própria presidenta Dilma Rousseff, é a prova de que os brasileiros têm memória curta demais e conscientização política de menos. Por isso, lembremos que Rosane não é um caso isolado. Quem não se lembra de Celso Pitta? Na condição de “cria” de Maluf, é eleito prefeito da cidade de São Paulo em 1997. Em 2000, envolve-se num escândalo gigantesco que o faz perder o mandato graças às denúncias da ex-mulher, Nicéia Pitta.

Inexiste cumplicidade ingênua

Mas em toda esta história suja (referência à entrevista), três pontos chamam a atenção. Primeiro, o comportamento da mídia (em especial, TV Globo) em abrir espaço para anunciar, sob intensa publicidade sensacionalista, o explorado à exaustão 20 anos atrás. A cobertura concedida à ex-primeira-dama soa ao ridículo. Rituais de magia negra ocorridos na Casa da Dinda, residência oficial do casal presidencial, a esta altura do campeonato, são informações que nada acrescentam à nação; quando muito, confirmam rumores do cotidiano de um casal presidencial com quem, até hoje, o Estado (leia-se: povo brasileiro) gasta soma absurda com segurança, face às prescrições jurídicas do país. A Globo deixa de lado seu desempenho e sua responsabilidade essencialmente social em prol da coletividade e põe em destaque vulgaridades de uma mulher ressentida. É a midiatização de “briga de casal”, de intriga de segunda ou terceira categoria.

O segundo aspecto é a trivialidade do caso em si mesmo. Mulheres deixadas para trás – quando desconhecem a palavra dignidade – esquecem tudo que viveram de bom ao lado do antes amado, transformado em inimigo número 1. Por fim, será que Rosane (ou Nicéia, ou seja lá quem for) é incapaz de discernir que é, essencialmente, cúmplice? E inexiste cumplicidade ingênua. São mulheres-comparsas em todos os sentidos. Ao lado dos ex-amados, aproveitaram benesses de dimensões astronômicas e de naturezas diversificadas – viagens aos cinco continentes, presentes recebidos como chefes de Estado e incorporados ao patrimônio pessoal, joias etc, como ela própria admite ao longo da entrevista.

A quem serviu a tal entrevista?

A delação a posteriori é prova irrefutável de que a mulher o faz por amor a si mesma, vaidade ferida ou qualquer outra razão. Dentre elas, jamais por amor à nação, dignidade e honradez. Sem dúvida, amores rompidos deixam cicatrizes n’alma. Amores rompidos equivalem a mortes – prematuras ou não. Só que, depois de morto, o corpo exige sepultamento muito além da materialidade. Chorar amores perdidos, execrar demônios e buscar paz configuram-se como longo período de luto. O que Rosane deixou nítido, apesar de se intitular evangélica desde 2005, ano do divórcio conturbado, é um ódio inesgotável e ambição desmedida. É um sentimento de perda e derrota. Pobre mulher! Mágoas, dores e rancores embalados e acariciados correspondem à automutilação. Quem opta por ressentimentos, raiva e ira deixa de lado a possibilidade de encontrar a paz. É preciso lembrar a concepção de cúmplice: quem tomou parte em alguma forma de delito; parceiro, sócio… Cúmplices do bem ou do mal!

E eis, então, a Globo no rol dos cúmplices da banalização das notícias. É o jornalismo marcado por ideologia mercantilista e sensacionalista. Meios de comunicação carecem de uma série de itens que assegurem sua credibilidade, bem além da circulação abrangente e/ou de uma receita publicitária expressiva. É preciso intervir significativamente na formação da opinião pública, graças à linha e/ou política editorial que agregue elementos vitais, a exemplo da veracidade, atualidade, coerência e firmeza de atitudes e propósitos: para quem ou a quem serviu a tal entrevista?

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[Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca, Instituto de Iberoamérica]