A mídia, muitas vezes, pode levar décadas para construir ou desconstruir seus ídolos, os tais “olimpianos”, como definiu o teórico francês Edgard Morin. Justamente há 20 anos, caía o jovem presidente da República, Fernando Collor, ícone baseado em cooper de camisetas variadas, mensageiro de um colorido que remeteu ao verde e amarelo, exposto em imagens de marido de jovem mulher, “barbie” no Planalto, ele, alvo de denúncias de corrupção, envolto em marketing inovador que o elegera meteoricamente, e, sobretudo, em clima misterioso que resultou em série de mortes de pessoas que com ele estavam envolvidas, ou por laços de sangue ou de afinidades políticas.
Na noite do domingo (15/7) o Fantástico, em rede nacional, trouxe a ex-primeira dama Rosane Collor pondo a cara na telinha, mostrando e contando histórias daqueles dias de poder, quando ela e seu ex-marido, hoje senador da República, vivenciaram um dos episódios mais comprobatórios do quanto é possível movimentar a massa jovem, a mesma juventude de “caras pintadas” que foi às ruas gritar Fora Collor.
A jovem senhora não só mostrou a sua própria cara de pau (ao reclamar, por exemplo, dos míseros 18 mil reais que ganha de pensão do ex-marido, enquanto outras ganham 40 mil) como misturou seus credos , relatou os trabalhos de magia que presenciou ou dos quais participou, e falou em Jesus. Provavelmente, a audiência deve ter demonstrado que o público se interessou por suas declarações anunciadas como bombásticas, o que, na verdade, apenas poderia ser decodificado como mais uma jogada de marketing sobre o tal livro que ela anunciou estar escrevendo, a nova vida religiosa que passou a levar, mesmo assim não desapegada do elemento “grana”, e a tachação de “maldição” Collor para as mortes que se sucederam na história do político alagoano, carismático renovado, digamos assim, cujos passos, hoje, no Congresso Nacional, integram alianças, talvez oscilantes entre Deus e o Demo.
Desfaçatez em reclamar proventos
A reportagem aproveitou para reproduzir cenas que trouxeram novamente as figuras de P.C. Farias, sua mulher, ambos já falecidos, e as imagens memoráveis da garotada de cara pintada, nas ruas, em resposta ao desafio presidencial que os chamou para apoiar suas verdades que pairavam em porões obscuros, hoje revelados, como atrelados a rituais de matanças de animais, trabalhos “pesados” como descreveu a ex-primeira dama, que acrescentou que a “mãe de santo”, de nome Cecília, assim como ela própria, mantinha-se sob a proteção de Jesus, o que pareceu ainda uma propaganda religiosa subliminar em horário de pico televisivo, num país onde as estatísticas comprovam o crescimento factual da adesão às religiões ditas protestantes.
Entre caras e bocas da entrevistada, a jornalista responsável pela reportagem insistia em perguntas pertinentes e impertinentes, levando Rosane a lembrar, por exemplo, os dias do famoso processo de impeachment, quando o país parou para acompanhar o movimento popular democrático que tirou do ar o casal “feiticeiro”, sob uma demanda que varou encruzilhadas de todo o Brasil e em cuja sensibilidade popular foi possível observar que havia mesmo algo de podre no reino da Casa da Dinda.
No dia seguinte, circularam na internet, nas redes sociais, montagens que aproximavam as imagens de Rosane e da personagem maledicente Carminha, vivida pela atriz Adriana Esteves na novela das nove, além de inúmeros protestos sobre a desfaçatez da criatura em reclamar proventos de ex-mulher de presidente compatíveis com sua vidinha de samaritana arrependida.
“Que las hay, las hay”
Televisão tem repercussão imediata no olhar do seu público atento ao mundo em volta, mesmo que a informação chegue manipulada ou maniqueizada, buscando rotular bem e mal, o receptor de mensagem tão propagandeada já não é tão bobo como há vinte ou quarenta anos atrás e, num país crescentemente democratizado, que avança na busca de minimizar diferenças sociais e no sonho de proporcionar educação de bom nível para todos, há que considerar a necessidade de que figuras assim, tão controversas ou dissimuladas, tão produzidas ou extemporâneas, mostrem mesmo suas “caras não pintadas” para que a lucidez, afinal, ilumine cabeças de eleitores que votam, que escolhem, que pensam, que observam, que podem mudar a história, quem sabe, ao concluírem que seus mandatários, na escuridão das madrugadas, podem estar “trabalhando” em magias negras ou, se bem escolhidos, poderiam estar “honrando” seus cargos com decisões sensatas e ações equilibradas.
Pelo menos, a entrevista da senhora Rosane Collor, tem um mérito: não cremos nas bruxas, como dizia minha avó espanhola, “pero que las hay, las hay”!
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[Maria Aparecida Torneros é jornalista, Rio de Janeiro, RJ]