Fiquei extremamente feliz e orgulhosa. Parecia que finalmente a opressão degradante, e mesmo a discriminação, haviam sido tiradas dos meus ombros.” Com essas palavras, Fatma Nabil descreveu como se sentiu ao expor seu rosto, emoldurado por um lenço creme, na televisão estatal egípcia essa semana. Pela primeira vez em meio século, uma apresentadora levava ao noticiário de um canal público, ao vivo, o símbolo da sua religiosidade. Não foram poucos os aplausos. Em um país onde a maioria esmagadora das mulheres cobre os cabelos, era a proibição do uso do véu nos meios de comunicação oficiais que causava estranheza. Mas o gesto da instant celebrity também acendeu uma luz vermelha entre parte significativa da população que se opõe à agenda conservadora da Irmandade Muçulmana, partido do presidente Mohamed Morsi. Não é de se admirar, portanto, que a imagem da jornalista tenha suscitado debates no mundo inteiro em torno da crescente islamização do Egito.
A discussão ajuda a explicar as contradições da ainda nascente democracia, expondo as fissuras entre Estado e religião, um velho mal-entendido que se arrasta ao longo dos tempos. A interdição ao véu no noticiário sempre configurou uma espécie de tabu, um tema jamais trazido à pauta do dia. Desde a jovem república comandada pelo nacionalista Gamal Abdel Nasser, no poder a partir de 1954, um hejab como o de Fatma vinha associado à noção de atraso e provincianismo em uma sociedade que, ao se modernizar, buscava no repertório secular um de seus pilares de sustentação.
Talvez ainda mais surpreendente para Nasser teria sido saber da fundação, no dia 19 de julho de 2012, do canal televisivo Maria. Nele, todas as profissionais portam o niqab, véu completo que expõe apenas os olhos das mulheres. Disposto a organizar uma transmissão estritamente islâmica, seu idealizador, xeque Abu Islam Abdullah, reivindica a tarefa de combater aquilo que descreve como o caráter sionista, cristão e também pagão dos outros concorrentes. Obstinado em sua missão, Abdullah afirma de forma categórica que a mídia tradicional, à qual se opõe, é dirigida por comunistas. Em uma teoria que resvala no delírio, os adeptos de Marx, para o xeque, estariam diretamente ligados ao que ele enxerga como movimento de “cristianização” do país.
“Direito constitucional”
São iniciativas como essas que acabam por arrefecer a polêmica do véu. A expansão maciça da televisão por satélite, verificada, sobretudo, na última década, esvaziou boa parte do poder da TV estatal. Muito mais impactante, devido a seu caráter de massas, do que as redes sociais ligadas à internet, a pluralidade dos canais de TV foi talvez o principal combustível da Primavera Árabe. Livres da censura governamental, e valendo-se das rivalidades entre os Estados vizinhos, eles acabaram, não raro, abrindo espaço às oposições nacionais na TV. Além disso, permitiam ao telespectador acompanhar, ao vivo, as mobilizações de populares que seu governo tentava afirmar não existirem.
O contato da população egípcia com programas de televisão ultraislamistas, porém, não se deve apenas às rivalidades interárabes. Mubarak, em sua estratégia de enfraquecer a oposição secular, permitia, sem grandes problemas, a franca proliferação desses canais. Sua política de apaziguamento e cooptação das forças fundamentalistas islâmicas passava centralmente pela franquia às mesmas dos meios de comunicação de massas. Abrindo tais brechas, o presidente deposto contribuiu, de forma paradoxal, para o avanço dos islamistas em direção ao núcleo do poder do qual ele pretendia afastá-los. Na linha de dar os anéis para manter os dedos, acabou perdendo ambos.
Vale lembrar que se Fatma foi pioneira ao expor publicamente sua escolha, o veto ao véu já havia sido questionado na Justiça em 2011. A também apresentadora Lamiya al-Sayed entrou com uma denúncia contra o Ministério de Informação pelo mesmo direito, com ganho de causa proferido por um tribunal de Alexandria. Sinal dos tempos, na sentença, o juiz declarou que “a proibição do véu islâmico vai contra a liberdade pessoal e de religião”. Os seguidores das posições nasseristas não vão dormir tranquilos. Abdel Maqsud, recém-nomeado ministro da Informação, e um dos quatro representantes da Irmandade Muçulmana no gabinete, declarou que nos próximos dias outras jornalistas aparecerão portando o véu islâmico. Fatma Nabil apoia, e completa: “Obtive meu direito legalmente garantido, que é constitucional. Me proibir de aparecer em uma TV nacional com véu não tem base na nossa legislação”.
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[Marcia Camargos é jornalista, pós-doutora em história pela USP; Aldo Cordeiro Sauda é cientista político]