Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De escrava a empreguete

Até o final de Cheias de Charme, na sexta-feira, 28/9, todas as quatro novelas da Globo, das 18h às 23h, estarão apresentando empregadas como protagonistas. É uma situação, creio, inédita na história da teledramaturgia da emissora. De personagens secundárias ou simples “escadas” para os tipos principais, as empregadas chegaram ao topo da cadeia dramatúrgica em 2012.

Ambientada no Rio, nos primeiros anos do século 20, Lado a Lado descreve como a urbanização do centro teve como consequência o início do processo de favelização da cidade. Desde as primeiras cenas, está claro que o núcleo pobre, formado por ex-escravos, tem um papel central. A criada Isabel, interpretada por uma das atrizes do primeiro time da casa (Camila Pitanga), é uma das protagonistas da história. Isabel vai confrontar a vilã Constância (Patrícia Pillar), que encarna o ideal “civilizatório” da elite na belle époque tropical. Ela sonha, por exemplo, com uma lei que proíba os cariocas de andar sem camisa na rua.

Em Avenida Brasil, a protagonista da trama Nina (Débora Falabella) encarnou uma cozinheira por mais de cem capítulos. Na tentativa de abrir os olhos do ex-jogador de futebol Tufão (Murilo Benício), enganado há 13 anos pela mulher Carminha (Adriana Esteves), Nina lhe deu clássicos de literatura para ler, mas o processo civilizatório não teve o efeito esperado até o momento. O papel das duas outras empregadas do Divino, Zezé (Cacau Protásio) e Janaina (Claudia Missura), cresceu tanto que elas hoje são tão protagonistas quanto os outros moradores da mansão. No início da novela, o nome da primeira nem aparecia nos créditos de abertura.

A vitória dos fracos e oprimidos

Em Gabriela, ambientada nos anos 20, em Ilhéus, Nacib (Humberto Martins) contrata uma ex-retirante como empregada (e amante), mas se apaixona e casa com ela. Proíbe, então, a moça de andar descalça e tenta transformá-la numa senhora respeitável, levando-a a recitais de poesia. Sentindo-se um pássaro preso na gaiola, a primitiva Gabriela (Juliana Paes) não suporta a rotina de casada e cai na estrada da vida, para decepção do marido-patrão. Vai trair Nacib com o filho do coronel e verá seu casamento ser anulado.

Mas nenhuma destas novelas da Globo foi tão bem-sucedida na tarefa de passar uma “mensagem positiva” para a ascendente classe C quanto Cheias de Charme. A trama girou em torno da rotina de três mulheres, que viraram cantoras de sucesso depois de gravarem uma música na qual descrevem as agruras da própria vida de “empreguete”. Alto astral, divertida, com texto de qualidade, a novela serviu de laboratório para experiências multimídia da Globo e foi prestigiada com participações especiais de várias estrelas da emissora e da música popularesca.

Cheias de Charme adotou, desde o início, um registro não apenas cômico, mas infantil. Quase de conto de fadas. A vilã Chayene (Cláudia Abreu) é uma bruxinha divertida. Sarmento (Tato Gabos Mendes), o advogado bandido, é vilão de HQ. Esse descolamento da realidade permitiu aos autores, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, promoverem uma autêntica revolução, com vitória dos fracos e oprimidos e humilhação dos poderosos.

De escravas a empreguetes, parece uma nítida evolução – mesmo no mundo da fantasia.

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[Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo]