Esta semana, duas matérias sobre arquivos jornalísticos, internet e bibliotecas me chamara a atenção. Gostaria de fazer uma conexão entre enfoques totalmente diversos para a solução do mesmo problema: preservação e acesso a documentos históricos.
A primeira matéria, “Site reúne todas as notícias de TV desde 2009”, descreve, neste Observatório,proposta inovadora de um norte-americano, Brewster Kahle. Ele utiliza a internet para preservar informações e dados importantes disponíveis na rede ameaçados de desaparecer no futuro:
“Inspirado numa referência da Antiguidade, a Biblioteca de Alexandria, Brewster Kahle tem uma visão majestosa do gigante agregador e digitalizador de informações Internet Archive que fundou e dirige… Queremos coletar todos os livros, músicas e vídeos que tenham sido produzidos por humanos ao longo do tempo”.
Em relação ao telejornalismo, o projeto tem uma proposta ainda mais ousada, que pode mudar de forma radical a maneira como assistimos e pesquisamos os noticiários de TV:
“…a coleção online do arquivo irá incluir todos os trechos de notícias produzidos nos últimos três anos por 20 canais diferentes dos EUA, abrangendo mais de mil noticiários que resultaram em mais de 350 mil programas distintos de informação… O Internet Archive vem gravando lentamente material de informação desses veículos, o que significa coletar não apenas todas as edições de 60 Minutes na CBS, mas também cada minuto, todos os dias, da CNN”.
No entanto, a questão mais importante e relevante desta matéria, para nós brasileiros, é a forma de financiamento da proposta:
“O projeto para noticiários de TV, como seus outros projetos para o arquivo, é basicamente financiado por bolsas, embora inicialmente Kahle tenha posto seu próprio dinheiro”
Seu próprio dinheiro? Somente este trecho já seria considerado inusitado e surpreendente para todos nós. Por aqui, sempre aguardamos e exigimos verbas do governo para tudo, inclusive para a implantação de ideias inovadoras ou restauração de prédios históricos.
Mas Kahle faz questão de acrescentar que seu projeto também conta com apoio de verbas públicas:
“…bolsas dos Arquivos Nacionais, da Biblioteca do Congresso e de outras agências governamentais que respondem pela maior parte do projeto… o orçamento anual do projeto que gira em torno de US$ 12 milhões (cerca de R$ 24 milhões) e emprega 150 pessoas”.
Como? Somente R$ 24 milhões e 150 pessoas para garantir a preservação e o acesso público e gratuito aos telejornais norte-americano utilizando a internet? No mínimo, intrigante.
Por último, Kahle revela a proposta final e muito ambiciosa do projeto:
“Por maior que seja esta coleta de informações jornalísticas é apenas o começo. O plano é voltar, ano a ano, e lentamente adicionar vídeos de notícias até o início da televisão”.
Hemeroteca
Agora, vamos citar a outra matéria publicada em O Globo,sobre a Biblioteca Nacional: “Marta anuncia R$ 70 milhões para Biblioteca Nacional”:
“Em sua primeira visita oficial ao Rio como ministra da Cultura, Marta Suplicy anunciou um pacote de R$ 70 milhões para a Biblioteca Nacional. A verba será usada para obras de engenharia e restauração no prédio sede, no Centro, e no anexo, na Zona Portuária, onde será implantada a futura Hemeroteca Brasileira”.
Até aqui, tudo bem. Caso você tenha dúvidas sobre o que seja uma hemeroteca, explicamos com auxílio do Dicionário Michaelis. Trata-se de “lugar onde se arquivam jornais e outras publicações periódicas”.
Talvez os “telejornais brasileiros” sejam finalmente considerados “jornais” ou “publicações periódicas” pela Biblioteca Nacional. Talvez a futura Hemeroteca da Biblioteca Nacional possa preservar os nossos telejornais.
Mais adiante, o texto do Globo parece indicar que a prioridade, no entanto, será a “preservação do prédio histórico da Biblioteca Nacional”:
“Desde os anos 1980, a Biblioteca não recebia uma grande reforma. Em 60 dias, está previsto o início do restauro do telhado, das claraboias e dos vitrais, além da troca dos elevadores dos armazéns da sede e da primeira etapa da reforma do anexo.Na semana que vem, haverá edital para recondicionamento dos banheiros, manutenção da sede, entre outras obras, e para o projeto da Hemeroteca.”
Perceberam a conexão?
Só depois de “recondicionamento dos banheiros, manutenção da sede, entre outras obras” é que a nova administração pensará no futuro digital da Biblioteca Nacional. Ou seja, na instalação da tal hemeroteca – “lugar onde se arquivam jornais e outras publicações periódicas”.
Em verdade, só o futuro vai garantir os projetos da BN e a permanência da ministra no governo. Se sobrarem verbas, e dependendo de delicadas negociações com os donos das emissoras brasileiras, talvez, um dia, lembrem-se dos telejornais.
Nada contra gastar milhões na preservação de um belo prédio centenário e histórico. Afinal, a última reforma foi realizada em 1980, segundo O Globo. No mundo ideal, deveríamos ter recursos para preservação das nossas “pirâmides” e para investir na multiplicação dos acervos. Mas a questão principal é decidir pelas “prioridades”.
Mas a proposta do presente artigo não é tratar de construção ou reformas de prédios públicos. É, sim, discutir uma questão importante e relevante: em pleno século 21, para que serve uma Biblioteca Nacional? Como utilizar as novas tecnologias para preservar e garantir acesso a documentos históricos fundamentais, como os noticiários de TV?
Gostaria, então, de discutir duas propostas diversas para investir dinheiro público. De um lado, temos a opção pelo investimento em “pirâmides”: grandes obras que se tornam patrimônio público e garantem dividendos políticos para os nossos gestores, os “faraós modernos”. Afinal, no passado utilizamos grandes somas de recursos públicos para a construção de novíssima capital federal, em Brasília, da gigantesca “Cidade da Música”, no Rio de Janeiro, e hoje investimos milhões em estádios de futebol em todo o Brasil. São as nossas “pirâmides” modernas. Nada contra. Todas essas obras ou reformas podem ser facilmente justificadas. A questão é decidir as prioridades.
De outro lado, temos a opção de investir na consolidação de ideias ou inovações. Colocar dinheiro público em acervos digitais na internet que preservem a nossa história do futuro, por exemplo.
Investir recursos públicos em obras faraônicas é melhor e mais justificável do que investir em ideias inovadoras? Vocês decidem.
Mentiras
Há muitos anos tenho me dedicado a lutar pelo livre acesso aos arquivos de telejornais brasileiros. Tem sido um luta solitária e inglória. Pelo jeito, poucos demonstram interesse para enfrentar as resistências das emissoras de TV brasileiras que guardam esses documentos históricos.
Ao contrário do acesso livre a documentos históricos – como jornais impressos preservados em nossas bibliotecas públicas –, caso você queira consultar os noticiários brasileiros do passado é necessário enfrentar uma verdadeira via crucis deentraves burocráticos e dificuldades técnicas. As decisões sobre o acesso aos telejornais são tomadas por poucos, com critérios indefinidos e nebulosos. É preciso ter muita persistência. O acesso é concretizado somente após longas averiguações, que incluem os propósitos das pesquisas.
Seria o equivalente a justificar o empréstimo de um livro em uma biblioteca qualquer.
Tente fazer, por exemplo, uma pesquisa sobre a participação ou omissão de determinada rede de televisão durante os primórdios da maior mobilização popular da história recente do país, o movimento pelas Diretas Já e veja os resultados.
O jornalista Mario Sergio Conti tentou. Em outubro de 2003, durante um embate público com o jornalista Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, ele relatou as dificuldades para ter acesso ao acervo da emissora (ver aqui):
“Você acusa todos que criticaram a cobertura do Jornal Nacional daquele comício de não terem feito a pesquisa necessária: ‘Bastava uma visita ao Centro de Documentação da TV Globo, onde todas as reportagens estão arquivadas, para que acusações tão graves simplesmente não existissem’. Perfeito. Mas eu fui, diversas vezes, ao Centro de Documentação da Globo quando fiz a pesquisa para Notícias do Planalto. E pedi a fita do JN de 24 de janeiro de 1984. As fitas daquele ano, explicaram-me, foram gravadas no sistema X, e estavam em processo de transcodificação para o sistema Y. Pedi para ver aquele telejornal específico lá mesmo, numa máquina qualquer, da maneira que fosse. Não dava, foi a resposta. Ao longo de quase dois anos de trabalho no livro, de vez em quando telefonava para o Centro de Documentação e perguntava se dava para ver o raio do JN do comício das diretas na Praça da Sé. Nunca deu.”
Perceberam a importância dos arquivos de telejornais para que outros pesquisadores possam escrever ou reescrever a história recente de nosso país?
Mario Conti não teria qualquer problema para suas pesquisas sobre questão tão importante e relevante caso a Biblioteca Nacional se preocupasse com a preservação de seu prédio histórico e centenário, mas também dedicasse recursos para a preservação e difusão dos telejornais brasileiros do presente e do passado.
O caminho indicado pelo projeto Internet Archive,com a utilização das novas tecnologias, podem ajudar a resolver o problema de acesso aos nossos telejornais. Afinal, como costumo advertir, “o acesso livre à nossa memória televisiva é questão fundamental e estratégica para a preservação da história e da democracia no Brasil. Neles, talvez jamais encontremos a ‘verdade’, mas certamente evitaremos a divulgação de mentiras” (ver “Pelo livre acesso aos arquivos de telejornais”).
***
[Antonio Brasil é jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina]