Quando você estiver lendo este texto, já saberemos quem matou Max e quem provavelmente matará Santiago. Essa trama final de Avenida Brasil, muito bem construída, garantiu, nos últimos capítulos da novela, o interesse cada vez maior do público. Mas não foi o macete de conto policial que fez a glória dela.
A partir da segunda metade dos anos 1960, as novelas se impuseram como nossa cultura popular por excelência. Mas elas não se ofereciam como alternativa cultural ao golpe militar e à ditadura que veio com ele, nem de longe eram um instrumento capaz de contrariar a opressão então instalada no país. A novela era uma dramaturgia de parque de diversões, onde as emoções são intensas, mas seu conjunto nada propõe sobre o estado do mundo. Vive-se apenas o frenesi de cada brinquedo mais ou menos excitante.
Ansiosa por discursos tautológicos e gestos significativos que desorganizassem o poder, não era isso o que a jovem inteligência do país estava a desejar naquele momento. A novela tornou-se o principal objeto das críticas ao conformismo, à alienação e até mesmo ao colaboracionismo.
O menos interessante
Não demos muita atenção ao momento em que a geração do Centro Popular de Cultura – órgão de ação cultural da União Nacional dos Estudantes, a UNE perseguida, destruída e proibida pelo golpe de 1964 – se aproximou da televisão. Esse encontro gerou uma dramaturgia que somava a tradição do folhetim (tão querida dos brasileiros desde o século 19, de José de Alencar a Artur de Azevedo, de Machado de Assis a Lima Barreto), ao melodrama do moderno cinema americano e ao populismo cepecista cuja evolução havia sido interrompida no auge pelo golpe. Levamos décadas para começar a compreender o papel e o sucesso de nossas telenovelas, essa sopa de caldo grosso, de romantismo oitocentista com sacadas hollywoodianas, de chanchada com cepecismo militante.
A televisão se livrava do domínio do drama pastoril caribenho e dava oportunidade a seus novos agentes de substituir o velho “realismo socialista” por um novo e moderno “realismo capitalista”. Nascia ali o maior fenômeno de cultura popular da história do Brasil e possivelmente da América Latina. Avenida Brasil é o apogeu dessa transformação, a consolidação desse contundente “realismo capitalista” nascido dos rumos que o país tomou nesses últimos vinte e tantos anos de democratização dentro de uma economia de mercado e de certa mobilidade social.
João Emanuel Carneiro, com a ajuda de seus excelentes diretores, desmonta as aparências, em seu texto ninguém nunca é o que parece ser, numa espécie de desconstrução do caráter formal dos membros de nossa sociedade. Há sempre uma contingência superior capaz de justificar o malfeito e nos fazer simpatizar com aqueles que o praticam. O mundo de Avenida Brasil é tão incerto e inesperado quanto a própria realidade contemporânea em movimento, onde os determinismos perdem a credibilidade para o acaso e a graça. Uma vitória do quântico sobre o relativo, onde o visível é apenas a parte menos interessante do real.
Simpatia pelos “vilões”
Em Avenida Brasil não há revolta, muito menos revolução; só existe o desejo de mobilidade social e as consequências dessa novidade. Num país por séculos dominado por uma mesma elite superminoritária, melhorar de vida assusta os velhos donos do poder e produz um novo empreendedorismo nas camadas populares, outrora condenadas à submissão. Personagens de classe média, os donos de pequenos negócios, as empregadas domésticas, os suburbanos do Divino e até mesmo a emergente família de Tufão só pensam nisso.
Não sou espectador constante de novelas, tenho preguiça de acompanhar dramas tão longos, capazes de durar meses. Mas quando essa novela começou, quando vi as primeiras cenas no lixão e seu contraponto na mansão de Tufão, entendi que estava diante de alguma coisa nova, que parecia misturar Charles Dickens com Lima Barreto, Victor Hugo com Nelson Rodrigues, num clima de exacerbação que lembrava a melhor tradição do teatro e do cinema brasileiros em seus melhores momentos. Nesse encontro de Scrooge com a Bovary, o destino de cada um não se constitui a partir de nossa vontade moral, mas a partir da força mesma das coisas, ainda que de modo delirante e trágico, quando se busca o direito à felicidade.
Uma dramaturgia capaz de provocar simpatia pelos “vilões” e até certo enjoo dos good guys. Ou o contrário: o que fazer com o masoquista bem comportado, ele vai pro merecido céu ou pro inferno onde terá prazer?
O pensador contemporâneo Tzvetan Todorov, citando Oscar Wilde, diz que aquele que ama quer sempre matar o objeto de seu amor. “Agora posso morrer”, diz ele, “talvez a taça da vida esteja plena demais de prazer para ser suportável.” Como Carminha.
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[Cacá Diegues é cineasta]