Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando o drama pessoal é notícia

Um dos livros mais interessantes sobre jornalismo que li nos últimos tempos é A construção da notícia, de Miquel Rodrigo Alsina (Vozes, 2009). O pesquisador espanhol de teorias do jornalismo e da notícia reflete que o noticiário não é apenas resultado de um trabalho profissional de produção de textos, mas o resultado de um processo de construção que começa com a compreensão de jornalistas sobre a realidade na qual os eventos acontecem. Alsina indica alguns aspectos importantes nesta perspectiva: “A realidade social é resultante de ações sociais intersubjetivas. A realidade não pode ser completamente diferente do modo como os agentes a interpretam, a internalizam, a reelaboram e a definem histórica e culturalmente. A construção da realidade, portanto, é produção de sentido através da prática produtiva e das rotinas da organização da profissão jornalística” (p. 45).

Este processo está diretamente relacionado ao lugar que a linguagem tem na sociedade; como expressão da realidade, ela própria é parte da construção social, com sua visão de mundo, estereótipos, influenciando nossa forma de perceber a realidade. Ao produzir uma matéria, jornalistas o fazem a partir de uma visão de mundo decorrente dos conceitos construídos na sociedade e nas instituições sociais com as quais interagem. Estas concepções ajudam a construir o imaginário individual e coletivo. Ao construir uma notícia, jornalistas trazem o seu imaginário para os temas que tomam forma de texto. Vale ressaltar que, por jornalistas, entenda-se repórteres e editores; fotógrafos, cenógrafos e diretores de redação.

O conflito Israel-Palestina

Claro que neste processo está presente a ideologia. Imaginários individual e coletivo são formados por construções ideológicas instituídas socialmente, ou seja, por aqueles valores ou regras de conduta que convencionam o que ou quem é bom ou ruim; em quem confiar ou desconfiar; o que devemos valorizar e o que desprezar; entre tantas outras coisas. Portanto, ao produzir notícia, jornalistas trazem com ela construções ideológicas que compõem o seu imaginário.

Os estudos de Miquel Rodrigo Alsina, e toda a reflexão que inspiram, me vieram à mente ao assistir à edição do mais importante telejornal do Brasil, o Jornal Nacional, de sábado, 17 de novembro. A cobertura sobre a onda de violência em São Paulo e Santa Catarina abriu a edição e foi dividida em três matérias com duração total de 3’35’’: uma sobre novas mortes e as providências do governo do estado de São Paulo, com duração de 2’15’’, imagens e depoimentos de moradores de regiões atingidas pela violência e palavra do governador; outra sobre a incineração de ônibus no interior de São Paulo, com duração de 16” e imagens dos ônibus destruídos; e uma terceira sobre ataques em quatro cidades de Santa Catarina, com 1’14’’ de duração, com imagens dos locais atingidos, de ônibus incinerados e palavra do comandante-geral da PM do estado.

Às notícias sobre a onda de violência urbana seguiram duas matérias sobre o acirramento do conflito Israel-Palestina resultante da intensificação dos bombardeios de Israel contra os territórios palestinos na Faixa de Gaza, com duração total de 3’50’’. A primeira, com duração de 2’42’’, informou sobre a ofensiva israelense com atuação do sistema de defesa israelense e bombardeio de prédios do governo palestino com imagens da destruição e de manifestação nas ruas palestinas contra os ataques e depoimentos de pessoas que se divertiam na praia em Tel Aviv, inclusive uma brasileira, e tiveram que se proteger após ouvirem aviso de perigo de ataque. A segunda matéria teve 1’08’’ de duração e informou sobre a movimentação diplomática no Oriente Médio para negociar o fim dos bombardeios, com cobertura do correspondente da emissora em Nova York e imagens de reuniões de líderes da região e informa da opinião do presidente dos EUA.

Por que uma notícia ganhou contextualização?

A terceira grande matéria teve o tema do julgamento do goleiro Bruno, ex-jogador do Flamengo, acusado de ser responsável pela morte da ex-namorada Eliza Samúdio, em 2010, junto com outras quatro pessoas. Uma única matéria de 4’19’’ expôs ampla cobertura do tema com detalhada reconstituição da história, depoimentos de autoridades e advogados, imagens e áudio de arquivo dos envolvidos, imagens do local do julgamento, que acontece a partir de 19 de novembro.

O que esta descrição de conteúdo indica? Já de início, que a matéria sobre o julgamento do goleiro Bruno ganhou mais tempo do que os blocos sobre o estado de guerra em São Paulo e Santa Catarina e na Faixa de Gaza, o que significa que tem maior grau de importância como notícia para o Jornal Nacional, se levado em conta o fator “duração”. Ou seja, na construção do noticiário pelos editores do Jornal Nacional, os telespectadores precisam de mais informações sobre o drama pessoal de uma celebridade do esporte nacional do que sobre o drama coletivo e de estado de guerra em metrópoles brasileiras e na Faixa de Gaza. No entanto, pode-se argumentar que as outras matérias são desdobramentos de assuntos que já eram notícia há algum tempo (a suíte, no jargão do jornalismo) – no caso da violência em São Paulo, desde 27 de outubro, e no caso da Palestina, desde 15 de novembro.

É por isso que nesta reflexão sobre a construção da notícia, como alerta Alsina, não podemos nos ater somente ao conteúdo, ao texto, à matéria-produto do telejornal, mas considerar a compreensão da realidade na qual os eventos acontecem. E aqui cabem perguntas antes de afirmações, tais como: por que a notícia sobre o julgamento do goleiro Bruno ganhou contextualização, imagens de arquivo, falas diversas e deu ao telespectador um conjunto completo do fato e das dúvidas que pairam sobre ele, e das consequências previstas, tornando possível a reflexão e a elaboração de opinião sobre o episódio? As matérias sobre a onda de violência urbana e sobre os bombardeios na Faixa de Gaza tiveram o mesmo tratamento quando abordadas na primeira inserção da sequência?

Uma construção ideológica

Para responder à segunda pergunta, visitei o arquivo JN de 27 de outubro a 29 de outubro, para verificar o tratamento dado ao caso da violência em São Paulo, e de 15 de novembro, sobre o caso Israel-Palestina. Resposta: não, não houve o mesmo tratamento quanto à contextualização e fornecimento de elementos para que o telespectador elabore reflexão e opinião sobre os casos. No caso da onda de violência urbana foi muito depois de 29 de outubro, depois de algumas matérias sobre assassinatos e toques de recolher, até que se tratasse a causa: uma possível retaliação do crime organizado frente a medidas de repressão à sua ação fora e dentro das prisões. O contexto em que tais medidas foram implementadas, os porquês, nunca foi explicitado detalhadamente aos telespectadores, em matérias com duração média de 2’30, diferente do que ocorreu com a matéria-chamada para o julgamento de Bruno e seus 4’19’’ de tempo.

Quanto ao conflito Israel-Palestina, a resposta é ainda mais negativa já que não há, desde a cobertura de 15 de novembro, tendo o telejornal o seu próprio correspondente no local, qualquer contextualização do porquê, das origens, do conflito armado. A abordagem, em matérias com média de 2’, coloca Israel na defensiva – o país ataca para se defender de bombas lançadas pelo Hamas, grupo cuja identidade não é tornada clara ao telespectador. Na edição de 17 de novembro, não há explicação do porquê dos 41 mortos no lado palestino contra três no lado israelense (números daquele dia), nem informações sobre a morte de civis, incluindo mulheres e crianças no lado palestino; tiveram voz na matéria, além do correspondente, uma israelense, um alemão e uma brasileira, em momento de lazer na praia em Tel Aviv. Nenhuma palavra sobre a ocupação ilegal de territórios palestinos por Israel ou sobre o que acontece no chamado “Muro da Vergonha” que divide Israel e Palestina. Pelo JN, telespectadores ficaram cientes da opinião do governo dos Estados Unidos, favorável a Israel, e não tiveram qualquer informação do que pensa o seu governo, o brasileiro.

O que concluir nesta reflexão após assistir a uma edição do Jornal Nacional e pesquisar outras nos arquivos da internet? A realidade construída pelos jornalistas que fazem este telejornal e que alcança milhões de telespectadores diariamente no país trata o drama social do estado de guerra urbana em São Paulo e Santa Catarina e da Faixa de Gaza (ambos na casa das centenas) com a redução própria do jornalismo-espetáculo, desprovido de reflexão e de promoção da capacidade de julgamento, que os telespectadores certamente têm. A realidade construída pelo noticiário do JN reafirma o drama local da onda de violência urbana como um problema de bandidos vs. polícia, que coloca a população à mercê de sua própria sorte; decreta o direito de Israel de invadir de vez, com muita violência, territórios que, há décadas, foram legalmente estabelecidos como palestinos, capítulo de um drama global sustentado há séculos com muito derramamento de sangue. O que pensa os Estados Unidos é o que devemos pensar, segundo o telejornal, o que coloca uma grande interrogação nas teorias de geopolítica que questionam as leituras da nova versão do imperialismo. O JN ressalta, sim, a desgraça pessoal de uma celebridade, personagem sempre central no jornalismo-espetáculo.

Quem é bom, quem é mau… O que valorizar, o que desvalorizar… Uma construção ideológica que povoa o imaginário de quem faz notícia, não apenas o dos donos da mídia como comumente se apregoa (indiscutivelmente, claro), o que certamente serve para manter tudo o que diz respeito às grandes questões sociais, nos planos local e global, no seu devido lugar. Já imagino como será a semana da cobertura do julgamento do goleiro Bruno…

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[Magali do Nascimento Cunha é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Metodista de São Paulo e autora do livroA Explosão Gospel. Um Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Ed. Mauad)]