A BBC não consegue sair de seu inferno particular. Depois de associar falsamente um membro do Partido Conservador e ex-tesoureiro de Margaret Thatcher a um caso de abuso sexual, e das suspeitas de encobrimento por parte da emissora de seus próprios escândalos sexuais, a tradicional corporação midiática britânica ainda está perdida no meio do turbilhão que abalou seriamente suas sólidas e tradicionais fundações. As denúncias continuam a chegar.
Desta vez, a BBC TV foi acusada de tudo de ruim que existe no jornalismo pela organização de nudistas ingleses “Naturismo Britânico“: falsificação da História, censura, jornalismo desonesto e vendido a interesses comerciais. Os naturistas (como hoje gostam de serem chamados os praticantes do nudismo) britânicos acabaram por chamar a atenção do Telegraph (27/11) ao clamar que a humanidade na antiguidade estava mal representada no documentário de Andrew Marr A História do Mundo. Segundo Malcom Boura, pesquisador e responsável pelas relações públicas da organização, egípcios (nos períodos mais antigos), povos da África, Austrália e América andavam nus, em eras passadas.
O documentário de Marr – que não é historiador – foi ao ar entre 23 de setembro e 15 de novembro deste ano. Os naturistas agora acusam a emissora de vestir personagens de épocas onde a grande maioria da humanidade não usava roupas de espécie alguma. “A BBC falsificou a História em troca do lucro”, acusou a organização. Depois da explicação inaceitável da BBC, que admitiu ter sacrificado a precisão histórica em nome da “sensibilidade da audiência”, o grupo partiu para a ofensiva e encaminhou reclamação oficial ao Parlamento.
Desculpa esfarrapada
Segundo a organização, as vestimentas no êxodo da África, no Antigo Egito, nos minóicos, nos caribes, nos aborígenes australianos e em membros de algumas tribos contemporâneas sul-americanas, “foram produto da BBC, não da História”. Os naturistas estão certos: as sacerdotisas minóicas exibiam seios nus em seus ritos e os ameríndios que viviam em regiões tropicais também não usavam roupas. O mesmo pode ser dito dos aborígenes da Austrália e da maioria dos egípcios antes do Antigo Império.
Boura afirma que a BBC constantemente aplica a autocensura, e que na maioria das vezes a audiência não consegue perceber o logro. “Onde estão os ideais de educação, integridade jornalística e honestidade?”, questionou o porta-voz dos naturistas, que acredita que a BBC falsificou não somente a História, mas a sociologia e a antropologia.
O mais incrível disso tudo foi a resposta da emissora inglesa: Paul Kettle, do Serviço de Audiências da BBC, disse estar triste sobre os “concessões na precisão” que a corporação se viu obrigada a fazer na produção da reconstrução dramática. Ele concordou com Boura, o pesquisador, porta-voz e nudista, ao declarar que este estava certo ao apontar o erro. Que as populações retratadas realmente não deveriam estar vestidas. A desculpa para as vestes foi mesquinha: “Ao fazer uma série como esta, temos que levar em conta a sensibilidade da audiência mais ampla possível”, explicou Kettle pela BBC.
Interpretações erradas
É aqui que a coisa fica mais interessante. Depois de publicar a pífia desculpa da BBC, o periódico acrescentou (talvez por engano) uma pitada de ambiguidade no artigo. Vejamos o original:
“But a spokesman said it was no excuse. ‘The BBC has admitted to the systematic falsification of history for profit and for fear of upsetting anyone,’ a spokesman said.”
Agora a tradução:
“Masum porta-voz disse que isso não era desculpa. ‘A BBC admitiu a sistemática falsificação da História por lucro e medo de aborrecer a alguém’, disse um porta-voz.”
Qual porta-voz? A estrutura lógica do artigo deixa claro que o porta-voz não poderia ser nunca o da BBC. Está óbvio que a pregação contra a desculpa esfarrapada da BBC veio do campo dos naturistas. Mas por que o jornal não o identificou no ato? Por que “um porta-voz”, seguido por outro “um porta-voz”? Quem disse o que, finalmente? Faltou precisão, aqui, na reportagem do Telegraph. Pode ser um detalhe pequeno, uma pequena minúcia com poder de truncar o conteúdo do artigo.
A coisa é complicada porque com tanta gente a confessar seus erros na BBC a leitura apressada do artigo pode sugerir a um leitor mais distraído que a própria emissora estava a incriminar-se novamente. Que a própria corporação estava a fazer o mea culpa do equívoco do documentário e a confessar que abertamente que falsificou a História por lucros. O modo como foi escrita a coisa pelo Telegraph foi não foi claro o bastante para não deixar margem para interpretações erradas.
Atacar a BBC pode ser imprudência
A BBC é um serviço essencial à sociedade inglesa. Não é um negócio sustentado por anunciantes, mas um serviço que faz parte da “cesta” de serviços públicos urbanos oferecidos pelo governo inglês pelos quais paga-se uma taxa. Ela não é propriedade de Rupert Murdoch e sua indústria de produção, exploração de mentiras e práticas abomináveis de jornalismo. A BBC esteve com os ingleses em seus piores momentos, desde os tempos do rádio. Foi com sua ajuda que o povo inglês se organizou e aprendeu a suportar o flagelo dos bombardeiros nazistas sobre Londres. Ela acompanhou e reportou a sofrida recuperação da devastação da II Grande Guerra. Foi a voz do mundo livre no front da imprensa antifascista no período.
Atacar a BBC sem reconhecer sua tradição de excelência em jornalismo pode ser uma grande imprudência. Há ainda um clima de mal-estar na mídia impressa inglesa depois do escândalo das escutas de Murdoch. E agora a coisa vazou para a mídia eletrônica, fortemente regulada pelo Estado. Não sabemos o que poderá advir daí. Os ingleses andam desconfiados e não estão a aceitar bem a ideia de um regulador estatutário para a mídia impressa. Quem pode garantir que a crise da BBC não poderá abalar também a confiança da população inglesa na regulação da mídia eletrônica, depois de tantos escândalos e erros?
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]