Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A TV pública em xeque

Uma nova lei entrou em vigor na Alemanha na virada de ano. A partir de 1º de janeiro, todo espaço residencial tem que pagar uma taxa mensal fixa de 18 euros pelo acesso às emissoras públicas de rádio e de televisão. O pagamento deste valor passou a ser obrigatório até mesmo para quem não tem rádio ou televisão em casa. A ideia é eliminar completamente os usuários piratas, sem precisar de fiscalização.

É claro que tem muita gente reclamando, pois essa mudança ocorre justamente num momento complicado para as emissoras públicas. O público, principalmente os jovens, garante não ter o menor interesse pela programação de rádio e TV estatais. Outro argumento é que a nova lei é uma afronta ao direito de decidir, pois não se pode obrigar alguém a consumir, ou ainda, a pagar por um serviço que não utiliza.

Em uma pesquisa entre leitores do semanário Der Spiegel, 60% são contra a nova lei, 37% a favor e 3% ficaram em cima do muro. Podemos dizer que se até dezembro de 2012 o lema era “muitos pagam e todos podem usar”, a partir de agora é “todos pagam porque todos podem usar”.

Assim como o rádio está presente em praticamente todas as casas, os alemães também são apaixonados por uma telinha. Segundo um recente artigo do jornalista brasileiro Flávio Aguiar, da Agência Carta Maior, sobre a TV alemã, “atualmente 95% dos lares alemães possuem pelo menos um aparelho de TV, num total de quase 40 milhões de unidades. Deste total, a metade assina TV a cabo” [ver, neste Observatório, “Um sobrevoo sobre a mídia alemã: a televisão”].

Foi em 1984 que a RTL, a primeira emissora privada de televisão na Alemanha, passou a operar e fazer concorrência às estatais ARD e a ZDF. Se somadas, a ARD (12,4%) e a ZDF (12,1%) estão na liderança de audiência. A RTL detém 14,1% e a SAT1, 10,2%. Mas se nos anos 1980 e 1990 as privadas eram criticadas pela má programação, hoje as estatais é que estão em baixa. Desde o aparecimento da TV privada, as estatais passaram a jogar pelos índices de audiência (mesmo sem dependerem financeiramente destes), nivelando-se aos canais privados. Também as junções de programação depois da reunificação causaram um certo descompasso nos canais estatais, que se torna visível no excesso de noticiários, por exemplo.

Novo órgão

A opinião de muitos é de que as emissoras públicas deveriam garantir uma programação cultural completa, com transmissão de espetáculos de teatro, concertos, óperas, além de filmes e seriados de qualidade, incluindo produções próprias e projetos experimentais. Mas não é assim. Em recente artigo publicado na revista Der Spiegel, o diagnóstico é de que “a emissora ZDF está em crise. Não é uma crise financeira, mas uma crise de perda de importância, perda de significado na sociedade”.

O principal programa de entretenimento da ZDF, Wetten, dass, no ar desde 1981, sofreu um baque depois de uma tragédia ao vivo, quando um jovem ficou tetraplégico tentando um salto mortal. Depois de um tempo fora do ar, o show em que gente “normal” se apresenta batendo recordes e outras façanhas voltou com novo apresentador em 2012, mas não decolou. Em contrapartida, o programa de TV mais adorado pelos alemães está no ar desde 1970. Tatort, uma série policial que vai ao ar na ARD nas noites de domingo, em termos de popularidade seria algo como o Fantástico ou a novela Avenida Brasil. Todo mundo para e assiste, grupos se reúnem para o ritual, os bares o mostram no telão.

No guarda-chuva da estatal ARD, fundada em 1954, estão ainda nove canais, além da Deutsche Welle, e 54 emissoras de rádio, tais como WDR, SWR, NDR, RBB e Rádio Bremen. Um fato curioso sobre estas emissoras é que elas têm as suas próprias orquestras, seus corais e big bands de jazz. Algumas delas têm renome internacional e são um exemplo da importância das rádios no contexto cultural alemão.

Enquanto até 2012 pagavam a taxa de rádio e TV aqueles que declaravam os seus aparelhos receptores (ou eram apanhados pelos fiscais), hoje não importa mais o número de pessoas e de aparelhos em cada residência. Quem não paga ou paga menos seguem sendo os pobres, os desempregados, os estudantes com bolsa e os deficientes físicos.

Para os cofres públicos, a lei que entra em vigor traz um aumento de € 7,5 para € 8 bilhões na arrecadação. A lei também traz mudanças nos espaços comerciais como escritórios, consultórios e táxis.

O órgão público responsável pelo recolhimento deste imposto era até 2012 a GEZ, uma central de arrecadação de taxas semelhante à GEMA, que foi assunto recente nesta coluna. Se a GEZ já era considerada menos simpática do que a GEMA, com a implementação da nova lei, o novo órgão público “ARD ZDF Deutschlandradio Beitragsservice”, chegou com novo nome, botando para quebrar. Suas cobranças afetam praticamente todo mundo que vive na Alemanha.

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[Cristina Ruiz-Kellersmann, de O Globo, em Berlim]