Quem tem a paciência de assistir trechos de alguns programas da TV comercial brasileira nos fins de semana não só fica entediado com a mesmice, intelectualmente corrompido com a xaropada e ameaçado de começar a semana com uma baita depressão dada a falta absoluta de imaginação dos produtores e apresentadores e do esforço, aparentemente proposital de todos, de anestesiar os telespectadores, para vender os “produtos” dos seus patrocinadores.
No meio dessa pasmaceira, eis que na manhã de domingo (13/1) a TV Câmara apresentou um documentário sobre Clementina de Jesus, a maior e melhor cantora negra de todos os tempos que o Brasil já teve. Falecida em 1987, a história e a trajetória dela constitui seguramente o maior patrimônio da cultura musical brasileira que a mídia dominante faz questão de conservar nos escaninhos esquecidos e empoeirados do seu acervo.
Clementina de Jesus nasceu em 1900. Nunca foi a uma escola, não sabia ler nem escrever. Aprendeu a cantar de tanto ouvir sua mãe vocalizando toadas ao lavar roupa num riacho que passava nos fundos de sua casa, no Rio de Janeiro antigo. Sua voz parecia conduzir a musicalidade de 10 mil anos, tal sua singularidade, conta João Bosco, o maior e melhor violonista brasileiro vivo.
O que houve com a qualidade?
A música e a voz de Clementina de Jesus encantavam multidões no auge do rádio, nas décadas de 1940 e 50. Compositores como Adoniran Barbosa tiveram seus sucessos celebrados na voz de Clementina, que combinava seus afazeres de dona de casa, lavando, engomando e cozinhando, com os de cantora famosa nacional e internacionalmente. Às vezes, saía de um tanque de roupa para se apresentar em shows em Paris. O tamanho de sua fama era igual ao da sua humildade e generosidade.
Ela exerceu um papel excepcional para artistas da sua época: servia de ponte entre uns e outros compositores, cantores, músicos de diferentes épocas e ritmos. Uma vez, Paulinho da Viola se surpreendeu numa apresentação dela: “De repente, Clementina entrou em transe. Cantou uma música que era só sonoridade. Quando ela voltou ao normal, escrevi o que ouvira e dei para ela o texto. Ela não parecia saber o que aconteceu.”
Da época de Clementina de Jesus para cá não precisa ir longe. Basta responder: o que houve com a qualidade da música brasileira? Onde estão os grandes compositores? O que houve com os intérpretes? Esses programas de auditório servem para que mesmo? Os festivais de música popular foram eclipsados pelo mercado?
A fonte não secou. Só está esquecida.
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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]