Dizem que o Brasil não tem memória. Sendo assim, é natural que a televisão brasileira seja um pouco esquecida. De seus primeiros dez anos de vida não sobrou nada. Os anos 1950 são uma pasta de arquivo vazia na história da televisão no país. É a década da TV descartável, desimportante, ao vivo.
Nos anos 1960, chegou o videotape e, consequentemente, a oportunidade de guardar. Mas a nova tecnologia não foi imediatamente associada aos verbos preservar e arquivar. Videotape virou sinônimo de economizar. Os programas eram gravados, apagados, e outros eram gravados na mesma fita. Isso fez com que não possamos ver hoje nada do que foi produzido pelas TVs Rio, Excelsior, Continental, entre outras. Parte do acervo da TV Tupi paulista está em poder da Fundação Cinemateca Brasileira, mas não se conhece nada que tenha ficado da Tupi carioca. A década de 1960, em termos de preservação, foi outra década perdida na televisão brasileira. Mesmo a TV Globo, fundada em 1965 e que sempre teve a preocupação de preservar sua memória, pouco tem do período em seus arquivos.
Os anos 1970 foram prejudicados por uma série de incêndios e alagamentos que atacaram as emissoras do país. Mas ainda existe um pouco do que foi produzido na época pelas TVs Record, Bandeirantes, Globo e Cultura. A história da televisão no Brasil começa a ser contada, sistematicamente, com imagens em movimento, só a partir dos anos 1980. É por isso que a descoberta de qualquer tipo de material de emissoras que já não existem mais deve ser recebida com alegria. Como é o caso desses arquivos da Rede Manchete.
A Manchete esteve no ar por 16 anos, entre 1983 e 1999. Na época, sua programação não era considerada marcante. Mas, com o passar do tempo, como acontece com qualquer imagem de arquivo, percebe-se a importância do que foi realizado ali. O maior sucesso de audiência de sua história foi a novela “Pantanal”, de Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1990. Já sabia-se que a novela não estava perdida. Há cinco anos, ela foi reprisada pelo SBT. A Manchete sempre investiu em teledramaturgia, obtendo alguns sucessos como “Xica da Silva”, “Dona Beja” e “Kananga do Japão”. Mas talvez não esteja nas novelas o melhor do tesouro dos arquivos da Manchete.
Já se sabe que no material recuperado pela TV Cultura há cenas do programa “Clube da Criança”, que marcou o começo das carreiras de Xuxa e Angélica. Seria bom saber se foi preservada a série musical “Bar Academia”, dirigida por Maurício Sherman, que, a cada 15 dias, a partir de 1983, traçava um perfil, apresentado por Walmor Chagas, do que havia de melhor entre os compositores de MPB. Caetano Veloso, Chico Buarque, Angela Ro Ro, Gonzaguinha, Edu Lobo foram alguns dos nomes que passaram pela série de 40 programas. Alguns trechos podem ser vistos em vídeos piratas no YouTube.
Nos braços do povo
Seria divertido assistir de novo a algumas edições de “FM TV”, o primeiro programa de videoclipes da televisão brasileira. Apresentado por Tim Rescala e Patrícia Pillar, “FM TV” mostrava números musicais de Michael Jackson, Madonna e Prince muito antes de a MTV entrar no ar.
Seria ótimo dar a novas gerações a oportunidade de conhecer o seriado “Tamanho família”, lançado em 1983. Criado por Mauro Rasi, e escrito por Miguel Falabella, Geraldinho Carneiro e Leopoldo Serran, com direção de Ary Coslov, o programa apresentava o cotidiano de uma família com absurdos que o aproximavam mais do teatro besteirol do que da tradição de “A grande família”. Foram ao ar 94 episódios com Ivan Cândido, Suely Franco, Diogo Vilela e Zezé Polessa.
Mas de todo o material da Manchete, o que há de mais valioso certamente é a transmissão do carnaval carioca de 1984. Naquele ano, a emissora teve a exclusividade da transmissão do desfile de escolas de samba. Foi o ano da inauguração do Sambódromo, e o então governador do estado do Rio, Leonel Brizola, para pagar mais rapidamente as despesas do governo com a construção da passarela definitiva para o carnaval, mudou as regras do jogo. O desfile, que tradicionalmente acontecia aos domingos, seria dividido em dois, com metade das escolas se exibindo na segunda-feira.
Era a garantia de bilheteria dobrada. Para aumentar ainda mais a receita, um terceiro desfile foi previsto para se realizar no sábado seguinte, com a disputa para a escolha da supercampeã, entre a campeã do domingo e a campeã da segunda-feira.
A Globo, que até então transmitia com excluvisidade os desfiles, não achou um bom negócio. O desfile de segunda-feira mexeria na grade de programação do horário nobre. Ela desistiu da transmissão. O governador, então, transferiu os direitos de exibição para a Manchete. No domingo, a Mangueira era a última a desfilar. Nenhuma escola sabia muito bem o que fazer com outra novidade do desfile daquele ano: a Praça da Apoteose. No finzinho do desfile, a passarela se alargava e, na cabeça do então secretário de Cultura, Darcy Ribeiro, a escola deveria se apresentar em apoteose. Seja lá o que isso quisesse significar.
O enredo mangueirense era “Yes, nós temos Braguinha”. Quando a escola chegou à Apoteose, dentro do prazo estabelecido, ela simplesmente, valendo-se do fato de que nenhuma outra agremiação viria atrás, voltou a percorrer a nova Passarela do Samba de trás pra frente. Fez um segundo desfile. Só que, desta vez, nos braços do povo, transformada em bloco, com o samba-enredo misturado a gritos de “É campeã!”. Inesquecível.
No ano seguinte, a Globo voltou a transmitir os desfiles. Mesmo em dois dias. Mas nunca mais houve uma apresentação como aquela da Mangueira. E só a Manchete registrou.
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[Artur Xexéo, de O Globo]