Entre 5 de junho de 1983 e 10 de maio de 1999, a TV Manchete atraiu a atenção dos brasileiros com um slogan simpático – “Você em primeiro lugar” – e uma boa grade de programas jornalísticos, esportivos e de entretenimento. Em 16 anos, produziu e lançou novelas como “Dona Beija” (1986), “Pantanal” (1990) e “A história de Ana Raio é Zé Trovão” (1991) – sucessos que marcaram a teledramaturgia nacional. No mesmo período, manteve o país informado na voz de jornalistas como Carlos Chagas, Villas-Boas Corrêa e Leila Cordeiro, que, entre outros, passaram pela bancada do “Jornal da Manchete”. Além disso, a emissora revelou as apresentadoras Xuxa e Angélica, à frente do “Clube da criança”. E, por fim, ainda se destacou na cobertura do carnaval carioca. Em 1984, foi a única TV a transmitir o desfile das escolas de samba do Rio, que inaugurava o então novíssimo Sambódromo. Mas, se nenhuma decisão jurídica for tomada com relação aos direitos autorais desse acervo audiovisual, o Brasil terá que esperar até pelo menos 2053 para começar a rever esses vídeos.
Tudo o que a Manchete levou ao ar foi gravado em aproximadamente 5.500 fitas dos mais diversos formatos – todos já obsoletos. Em 1999, quando a rede fundada por Adolpho Bloch pediu concordata, revelando uma dívida de R$ 400 milhões, o material caiu na massa falida da empresa e de lá só saiu em 2005, quando foi arrematado num leilão realizado em São Paulo.
Semanas após a venda, porém, chegou à sede da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura uma enorme doação: todas as fitas da TV Manchete.
– Lembro-me bem desse dia. Recebemos dezenas de sacos com fitas de todos os tipos: uma polegada, Betacam, cassete – conta Teder Moras, hoje gerente de documentação do canal. – O que se dizia era que quem arrematou o material não tinha interesse nos vídeos. Queria apenas as prateleiras onde eles estavam armazenados ( supostamente feitas em peroba do campo ).
Passaram-se dias até que os funcionários da fundação vissem que jazia ali um acervo com gravações de diversas Copas do Mundo, torneios de tênis, corridas de Stock Car, Fórmula Indy, programas infantis como “Clube da criança” e adultos como “Clodovil abre o jogo”.
– Quando abrimos os sacos, levamos um susto e começamos a nos organizar para fazer a higienização e a catalogação – lembra Moras.
Durante quase quatro anos e a um custo de aproximadamente R$ 2,4 milhões, a equipe da TV Cultura salvou da putrefação e alojou na já gigantesca videoteca da casa (que comporta mais de 220 mil horas de gravações) 4.600 fitas da Manchete. Dez por cento do material que lhes foi entregue não puderam ser recuperados, tamanho o acúmulo de fungos e o mau estado.
Agora, com tudo limpo e inventariado, a Cultura quer fazer uso do acervo, mas tem pela frente uma barreira complexa a ser transposta.
– Estamos de mãos atadas. Não sabemos para quem deve ir o direito autoral pelo uso das imagens. Para a família Bloch? Os ex-funcionários? A massa falida? – questiona o gerente de documentação. – Há uma indefinição jurídica que impede qualquer movimento.
Desde 2010, a TV Cultura tem um projeto para digitalizar todo o acervo da TV Manchete. Orçado em R$ 8 milhões, seria o passo inicial para qualquer trabalho a ser realizado com o material. O texto do projeto, segundo Moras, já foi inscrito em diversos editais para captação de recursos, mas voltou de todos sem conseguir deslanchar. A digitalização das 4.600 fitas sempre esbarra na pendência dos direitos autorais.
Para tentar pôr fim à questão, um grupo da TV Cultura foi a Brasília no ano passado para pedir ajuda. Diz ter falado com várias instituições e com o Ministério da Cultura (MinC). Até agora, entretanto, a indefinição se mantém.
Há um agravante. Também pairam sobre o arquivo direitos conexos – devidos, segundo a lei, aos que dão vida às obras: atores e atrizes de novelas, seriados e filmes, por exemplo.
– Acho que será preciso uma sinergia muito grande entre os ministérios da Cultura e da Justiça para que o Brasil possa voltar a apreciar esse material – lamenta Moras. – Estamos lutando para mostrar que dar visibilidade a ele é importante. Nosso objetivo é preservar a memória e servir de fonte de pesquisa.
Domínio público só a partir de 2053
Procuradas pelo Globo, a secretaria do Audiovisual e a Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC informaram por nota que o assunto não é de sua competência. Desde a gestão do ex-ministro Juca Ferreira, a pasta trabalha numa nova Lei de Direito Autoral.
– O caso é muito complicado e mostra que o sistema do direito autoral é falho – diz o advogado e especialista no assunto Bruno Lewicki. – Mas uma coisa é clara: se o leilão só envolveu o suporte físico, ou seja, as fitas, não alcança necessariamente a obra. Muito menos o direito autoral sobre ela, que é algo bem distinto.
Para Lewicki, há duas soluções. A primeira é que a TV Cultura ou qualquer outra organização disposta a investir na digitalização do acervo tente adquirir, junto ao juízo da massa falida, o direito patrimonial sobre as produções audiovisuais. A dificuldade aí seria calcular o valor correto. Qual o preço justo?
A segunda opção, mais teórica do que prática, passaria por qualquer uma das três esferas de governo, que poderiam desapropriar o conjunto das obras, assim como se faz com qualquer outro bem.
– É improvável, mas, se o governo seguir os trâmites legais de indenização, pode fazer – diz Lewicki.
Allan Rocha, professor de Direito Civil da UFRRJ e de Políticas Culturais e Direitos Autorais da UFRJ, também fala dessa hipótese como uma das soluções no horizonte:
– O governo não só pode como deveria fazer a desapropriação, indenizando quem comprovar que tem direito sobre essas autorias.
Um terceiro caminho suscitado por Rocha consiste em publicar anúncios em jornais chamando os donos dos direitos autorais, esperar um prazo razoável para eles se manifestarem e, caso ninguém apareça, reservar, em conta bancária específica, uma quantia condizente com o valor apurado de mercado. Como uma salvaguarda para futuras cobranças.
Se nada disso for feito, será necessário esperar até pelo menos 2053. Só então as primeiras imagens cumprirão 70 anos de sua exibição e começarão a cair em domínio público.
Especialistas em processos de falência destacam que o problema tem a ver com o fato de a falência da Manchete correr segundo determina a lei vigente na época, a de número 7.661 de 1945. Por ela, explicam os juristas, ao arrematar um bem de uma massa falida, o comprador levava consigo todas as obrigações relativas a ele. Desde 2005, há uma nova lei de falências, e ela mudou esse cenário radicalmente. Agora, qualquer bem que vá a leilão – de massa falida ou não – precisa estar livre de todo e qualquer ônus, para completo usufruto do arrematador.
Procurado para comentar o assunto, Pedro Jack Kapeller, ex-sócio da Bloch, não retornou os pedidos de entrevista.
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[Cristina Tardáguila, de O Globo]