Pegue uma novela que não anda muito bem de audiência e introduza algumas cenas bem absurdas, daquelas que afrontam a inteligência do espectador. A técnica é arriscada porque pode produzir efeito contrário ao esperado, mas às vezes funciona. É o que ocorreu com Salve Jorge, atração principal da Globo, cuja audiência segue abaixo da meta. Ambientada entre Istambul, a Capadócia e o Rio, a novela de Gloria Perez vinha, desde o início, exigindo um exercício abnegado de “suspensão da descrença”, mas nesta semana superou todos os limites – e o Ibope subiu.
A autora, como se sabe, tem um estilo calcado no desdém ao realismo, e orgulha-se dele. Lembre-se de O Clone ou Caminho das Índias, por exemplo. O português é sempre uma língua universal, compreendida tanto numa delegacia de Istambul quanto no mercado de Fez (Marrocos) ou nas ruas de Jaipur (Índia). Os personagens viajam do Rio para essas cidades e voltam sempre num piscar de olhos, sem se cansar ou sentir o fuso. As visitas aos recantos exóticos servem, simultaneamente, para aulas de caráter turístico-cultural e como cenário para tramas de conteúdo “jornalístico”, inspiradas em dramas reais.
Em Salve Jorge há dois bons temas em exposição – o tráfico de mulheres e o comércio de bebês. O primeiro, narrado numa tentativa de thriller policial, envolve a heroína e acabou tornando-se a peça de resistência da novela.
Realismo às favas
Criada no Complexo do Alemão, mãe solteira, independente e batalhadora, Morena largou o namorado, Theo, capitão da cavalaria, para trabalhar em Istambul. Chegando lá, descobriu que fora enganada e se viu obrigada a se prostituir. A quadrilha mantém a moça quieta à base de ameaças contra seu filho e sua mãe, faxineira na casa de uma delegada de polícia gente finíssima, Helô. De volta ao Rio, junto com uma colega de trabalho, Jéssica, Morena teve inúmeras oportunidades de revelar o seu infortúnio à mãe, à delegada e ao namorado, mas não falou com nenhum deles.
No capítulo de segunda-feira (21/1), finalmente, Morena resolveu contar tudo para uma mulher que ela mal conhece, justamente a vilã-mor da história, a empresária Lívia Marini. Em consequência, sua amiga Jéssica é morta por Lívia com um golpe de seringa, subitamente retirada da bolsa. Uma seringa? “E eu saio sem ela para algum lugar? No nosso ramo, a gente não sabe quando vai precisar”, explicou a bandidona para uma colega de gangue. Desolada com a morte, Morena tem uma visão de Jéssica envolta por uma luz dourada e promete à amiga vingá-la de qualquer maneira. Ainda tem cem capítulos para cumprir a promessa.
O público reagiu a essa loucura toda com satisfação. No dia 21, a audiência atingiu seu patamar mais alto, 37 pontos, mas ainda muito inferior ao que se espera de uma trama nesse horário. Gloria Perez, como se sabe, é discípula de Janete Clair, rainha do melodrama na TV. Certa vez, conta Artur Xexéo no livro A Usineira de Sonhos, a autora de Pecado Capital recomendou ao marido, Dias Gomes, e a Ferreira Gullar, que escreviam uma novela juntos: “Mandem o realismo à merda. O público vai adorar.” Gloria Perez captou a mensagem, e segue mandando brasa.
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[Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo]