Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E tem gente que acha muito…

Para boa parte dos telespectadores de canais de TV por assinatura, “zapear” é a melhor forma de escolher o que ver. Num canal há um jogo de vôlei ou de futebol, noutros, um documentário sobre a natureza, uma entrevista com celebridades, noticiários jornalísticos e filmes para todos os gostos. A escolha vai depender do estado de ânimo naquele momento, da disposição de quem “zapeia”.

De uns meses para cá, o ato de “zapear” tem trazido boas surpresas. Um dia, num desses “telecines”, passava um filme – brasileiro, via-se logo – sobre coragem e covardia, honestidade e corrupção, nos primórdios da busca por petróleo no Brasil. Quem tem mais de 60 anos vai lembrar das lutas políticas que se travaram no nosso país por causa do petróleo, lutas que levaram um presidente da República ao suicídio. Os jovens de agora, estes sabem mais de Lincoln, o presidente dos EUA que aboliu a escravidão lá, do que da princesa Isabel, que aboliu a escravidão cá. O que dizer das conspirações, até assassinatos, nos anos 1940-1950, em torno da existência ou não de petróleo no Brasil?

Como a nossa história pode ter tantos “mistérios” quanto os da inesgotável múmia de Tutancâmon, eis que, num desses discoveries, surge um programa Detetives da História investigando se o padre Roberto Landell de Moura (1861-1928) seria mesmo um pioneiro da radiodifusão, da estirpe de um Marconi ou Tesla. O programa, que só poderia ter sido feito por brasileiros, “prova” que sim.

Começa-se a falar português

Sempre “zapeando”, num outro dia surge-nos um ótimo documentário sobre o petróleo do pré-sal. Ficamos sabendo que o Brasil conta com excelentes laboratórios de pesquisa onde cientistas de tez mestiça nos explicam em português brasileiro e, não, num afetado português dublado de cientistas saxões, os inéditos problemas que precisaram solucionar para encontrar petróleo a mais de 7 mil metros de profundidade sob o mar, problemas que, pensávamos, só James Cameron podia resolver em busca do Titanic… E, num outro canal, especializado em vida animal, surge-nos um grupo de jovens biólogos, brasileiros, pesquisando tubarões em Fernando Noronha, não na Austrália ou na costa da Flórida. Ah! Também estudamos tubarões?!

A realidade da vida, sabemos, é a fonte da ficção. “Zapeando”, descobrimos que pelas obscuras ruas da nossa São Paulo, imigrantes angolanos, bolivianos e coreanos constroem histórias de sobrevivência que nada ficam a dever – nem às histórias, nem à realidade por trás delas – aos dramas de Beutiful (Alejandro Iñarratu) ou Coisas belas e sujas (Stefen Frears). Sim, o primeiro mundo é aqui…

Súbito, damo-nos conta de que algo está mudando na televisão por assinatura, em especial nos canais dedicados a filmes e documentários. Começa-se a falar português brasileiro neles. É uma alternativa à mesmice do inglês americano ou às suas anódinas dublagens. Esta mudança tem uma causa, a Lei 12.485, que obriga os canais de filmes e documentários a veicularem pelo menos três horas de produção brasileira por semana. Só três horas semanais? E tem gente que acha muito…

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[Marcos Dantas é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro]