Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Trocando ‘furos’ por sexo

Tanto quanto políticos e advogados, jornalistas sempre renderam bons vilões na ficção -primeiro, na literatura; depois, no cinema e, mais recentemente, na televisão. O seriado “House of Cards”, disponível desde 1º de fevereiro na Netflix, tem merecido reparos pelo retrato nada edificante que pinta de um tipo específico, e poderoso: o repórter de política.

Jornalistas costumam ser críticos e até maledicentes com colegas de ofício, mas não gostam de ouvir avaliações vindas “de fora” a respeito de suas práticas.

A série se passa em Washington, nos dias atuais. O protagonista, Frank Underwood (Kevin Spacey), um experiente e poderoso deputado democrata, acaba de saber que o presidente dos Estados Unidos ignorou um acordo que parecia certo e não o nomeou secretário de Estado.

Destinado a se vingar, mas sem perder a proximidade com o presidente, Underwood faz tudo o que o senso comum imagina ser da alçada de um político sem escrúpulos: ajuda a queimar o nome do político indicado para o cargo com que sonhava, manipula votações, mente, troca cargos por votos, destrói carreiras, faz lobby suspeito etc..

A jornalista Zoe Barnes (Kate Mara) tem um papel central neste projeto de poder de Underwood. Sonhando voos mais altos no Washington Herald, onde trabalha, a jovem repórter se aproxima do deputado interessada em conseguir notícias exclusivas mesmo que em troca de sexo.

Casado, o deputado adverte a repórter de que ela vai se machucar no fim, mas Zoe está mais interessada nos benefícios no curto prazo. Estabelece-se, então, uma relação de negócios, com benefícios para ambos.

Retrato da repórter

Com as informações passadas por Underwood, a carreira da jornalista dá um salto. Logo é convidada pelo chefe a assumir o cargo de principal repórter na Casa Branca, mas recusa. “É onde as notícias morrem”, diz. A ocupante do posto, uma repórter veterana, suspeita que Zoe esteja trocando notícias exclusivas por sexo. Em um episódio, dirá para a colega: “Também fiz isso no início da carreira”.

Numa discussão com a dona do jornal, o chefe de Zoe Barnes diz que a repórter, assim como o Twitter e blogs, é superficial. O jornal foi fundado sob outras bases e não são essas novidades que o manterão vivo, diz. É demitido.

Depois de dar uma série de “furos” no Herald, ela troca o jornal por um site, Slugline, onde ouve da nova chefe que não precisa mostrar previamente os seus textos. “O objetivo aqui é que todos publiquem com mais velocidade do que eu tenho a capacidade de ler.”

Tanto os diálogos entre Zoe e Underwood, quanto os que a repórter tem com os demais jornalistas na série são de uma crueza assustadora. Beau Willimon, autor do texto, trabalhou com uma série de políticos, inclusive Hillary Clinton, no final dos anos 1990. É autor da peça “Farragut North”, que virou o filme The Ides of March (“Tudo pelo Poder”), dirigido por George Clooney em 2011.

Enquanto a série “The Newsroom” apresenta uma visão do que o jornalismo poderia ser, mas não é, “House of Cards” expõe o que ele não deveria ser. Não espanta que o retrato da repórter Zoe Barnes, bem como o da profissão hoje, pintado nesta série, desagrade muito mais.

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[Mauricio Stycer é colunista da Folha de S.Paulo]