Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um produto a serviço dos produtores

Se há vida inteligente no jornalismo, parece não estar na redação do Jornal da Band, pelo menos não a serviço de um jornalismo com o mínimo de imparcialidade e propenso à prestação de serviço público. Assumir posicionamentos claros, embora muitas empresas midiáticas prefiram escamotear suas preferências ideológicas, é salutar para um jornalismo menos contaminado pelos interesses das empresas produtoras de informação.

E esse escamoteamento, se travestido em aparência de isenção, evidencia tão somente o modo tendencioso empregado em muitas reportagens, caso da exibida em 4 de junho, sobre o conflito entre produtores rurais e indígenas em Sidrolândia (MS), na disputa pela reintegração de posse da Fazenda Buriti, ocupada pelos índios, que reivindicam a homologação das terras já reconhecidas pelo Ministério Público como de posse permanente dos terenas.

A questão é bastante delicada e já custou a vida de um indígena – mereceria, portanto, uma abordagem mais profunda, com ampla discussão, uma vez que envolve múltiplos interesses, principalmente agrários, econômicos e de desenvolvimento. Apresentar a ação indígena como a de uma guerrilha, com a vitimização dos produtores rurais, não contribui para o entendimento da complexidade do assunto. De um lado, a sociedade produtiva, de outro, os índios, com todos os privilégios e as garantias (quase nunca verdadeiramente asseguradas) da terra – pintados, não na simbologia corporal, mas como inimigos do desenvolvimento nacional, uma vez ocupantes ociosos de largas extensões de terras.

Sonegar um direito

Nesse jogo midiático sabe-se para que lado pende a balança ou a câmera (e o microfone), quando apontada somente para um dos lados – e na referida reportagem ficou evidente a diferença no tratamento dos fatos, principalmente pela pretensa argumentação com que se apresentaram as imagens em contraponto entre índios raivosos (e os danos por eles praticados) e proprietários rurais bem intencionados, herdeiros centenários, em alguns casos, de terras na região, diga-se en passant, propriedades bem cuidadas e sob ameaça de serem invadidas. Chegou-se ao cúmulo de mostrar uma fazenda fronteiriça a terras indígenas onde a mata de arbustos e árvores denotaria abandono em comparação às pastagens vizinhas prontas a receber o gado ou sementes. Sobraram acusações aos indígenas como as de tomarem terras para abandoná-las depois à erosão e ao descuido, quando não as arrendam.

Sob essa lógica argumentativa, pressupõe-se que os indígenas – herdeiros mais que centenários dessas terras – devessem viver confinados a restritas áreas (talvez terras improdutivas), isolados, como antes do “achamento” do Brasil. Não há espaço algum para questionamento da visão de mundo e de cultura que se confrontam, imperando tão somente a razão econômica e produtiva. Note-se o uso do termo “produtores” rurais, empregado repetidas vezes, a acentuar a oposição aos índios, que não produziriam nada.

Dar voz somente a um dos lados, em quaisquer que sejam os conflitos, é sonegar ao outro um direito precípuo num país que se pretende democrático, mais ainda para uma imprensa que se arvora livre no seu exercício de informação.

Pseudomoralismo do senso comum

A parcialidade talvez não seja um pecado mortal – a isenção total é uma utopia, todo discurso vem revestido em alguma ideologia. Isso não significa que se possa negar o respeito ao outro, o que, por sua vez, seria inviabilizar qualquer possibilidade de diálogo (e compreensão), dada a desigualdade dos participantes.

O jornalismo praticado nesses moldes, ainda que se queira mostrar o drama de um dos lados no conflito – no caso, os proprietários rurais da região de Sidrolândia –, revela o aspecto mais estreito e conservador das empresas jornalísticas, embebido no pseudomoralismo do senso comum pela negação da alteridade e na sonegação do respeito aos indígenas – respeito que no campo moral (e não moralista), esgotada ou calada a razão, se daria pela prioridade ao ser humano em sua essência, criando-se condições para o diálogo e a mediação. Talvez seja esperar demais.

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Afonso Caramano é funcionário público, Jaú, SP