Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É só uma novela?

Sempre que escrevo sobre novelas, aqui na Folha ou em meu blog, surgem leitores para criticar minha preocupação com o assunto. “É só uma novela”, costumam bradar, querendo dizer: “é ficção”, “não tem importância”, “é uma bobagem”.

Acho curioso ver gente ignorar o lugar que a novela ocupa na vida do brasileiro. Para além da diversão (ou não) que oferecem, novelas influenciam, fazem pensar, confundem.

“Sangue Bom”, exibida pela Globo às 19h30, é um bom exemplo. Minha favorita entre as que estão no ar, a trama de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari trata de um assunto não exatamente original, mas extremamente atual, a obsessão pela imagem e pela fama.

Com extremo bom humor, e uma penca de personagens caricatos, a novela desce a minúcias para mostrar como se constrói artificialmente a celebridade. Recentemente, um jovem ator, Filipinho (Josafá Filho), foi acusado de ser gay por uma fã rejeitada. Em torno disso, os autores desenvolveram uma sequência de acontecimentos ilustrativos.

“Um galã não pode dar pinta. Se suas fãs desconfiarem que você é gay, a sua carreira já era”, explicou Tábata (Samya Pascotto), empresária de Filipinho, preocupada com o escândalo. “Posso dar um conselho: arruma uma namworada”.

O “perigo”, a novela explica, é que “nesse meio, tudo o que parece, é!” Entra em cena, então, a Mulher Mangaba (Ellen Rocche), uma cantora de funk cujo maior talento é a sensualidade. Contratada para namorar Filipinho, ela combina com um fotógrafo registrar, escondido, imagens de um encontro dela com o rapaz.

Pedido recusado

Maria Adelaide e Villari têm, claramente, uma visão crítica desse mundo. Mais, parecem se divertir envolvendo seus personagens numa trama que conta, também, com uma diva decadente da televisão, Barbara Ellen (Giulia Gam), armando situações para aparecer a todo custo, com a ajuda de uma repórter enxerida, Sueli Pedrosa (Tuna Dwek), além de um dono de agência de publicidade boçal, Natan (Bruno Garcia), e um programa para ricos e famosos, chamado “Luxury”, entre outros elementos típicos.

Nenhum autor de novela ignora o poder que tem em mãos, como disse claramente Ricardo Linhares, autor de “Saramandaia”, numa entrevista recente ao blog da jornalista Maíra Kubík Mano: “As novelas refletem o momento em que estamos vivendo. São um espelho da sociedade. Não impõem mudanças de comportamento. Mas os autores que são progressistas podem abordar movimentos e transformações que já estão embrionários na sociedade e ampliá-los, com a discussão na ficção. Assim, os temas passam a ser discutidos também no outro lado da telinha.”

Linhares tratou, de forma bastante progressista, do tema do aborto na novela. “Eu acho um absurdo o aborto não poder ser feito às claras, em clínicas boas. A mulher é dona do próprio corpo, é a gente que decide se quer ter o filho ou não”, disse a personagem Stela (Laura Neiva).

A cena foi vista como um contraponto ao texto de Walcy Carrasco, colocado na boca do médico Cesar (Antonio Fagundes), num dos primeiros capítulos de “Amor à Vida”. Ao recusar o pedido de uma paciente, que queria fazer um aborto, argumentou: “Para mim, um bebê é a prova mais concreta que Deus existe”.

É só uma novela?

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo