Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Controverso debate sobre o Estado laico

Na última quinta-feira (1/8), o programa Na Moral, exibido pela Rede Globo, apresentou um polêmico debate sobre o Estado laico no Brasil. Para discutir o tema proposto foram convidados o presidente da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior, o padre Jorjão, o babalaô Ivanir dos Santos e o pastor Silas Malafaia. “Um debate tão direto botando lado a lado ateu, candomblecista, pastor evangélico e padre. Não me lembro de ter visto algo tão transparente assim, nada semelhante a isso”, afirmou o apresentador Pedro Bial ao site oficial do programa.

Entretanto, ao contrário do asseverado por Bial, o programa SuperPop, da Rede TV!, já havia realizado algo similar no ano passado. “Pautas discutidas aqui no nosso palco estão virando pautas de muitos programas discutidos por aí. Nada se cria, tudo se copia. Eu adoro ser copiada”, provocou Luciana Gimenez, apresentadora do SuperPop.

Controvérsias à parte, é fato que o programa Na Moral, apesar do pouco tempo para se debater um tema tão complexo, apresentou uma discussão extremamente acalorada. Segundo o entrevistado especial do programa, o ex-presidente do STF Carlos Aires Britto, “Estado laico é religiosamente leigo, no sentido de que o Estado não pode patrocinar, não pode favorecer nenhuma seita, nenhuma confissão, nenhum culto religioso. Embora ele assegure proteção aos crentes”.

Se o Estado é laico, não deve favorecer determinado credo

Retoricamente, todos os convidados se mostraram favoráveis ao Estado laico. “Todos nós defendemos nossas ideologias baseadas em crenças e valores que temos, sejam elas filosóficas ou religiosas”, destacou o pastor Silas Malafaia. “Estado laico é aquele que, não tendo religião oficial, defende e protege um dado religioso. O Estado é laico para que haja tolerância religiosa”, frisou o padre Jorjão. “Estado laico para nós é fundamental. Ele não suprime a religião de ninguém, tem que zelar pelo bem comum de todos”, afirmou o babalaô Ivanir dos Santos.

Todavia, para os religiosos que estavam no programa a presença de crucifixos em repartições públicas, prática que contraria a laicidade estatal, deve ser mantida por se tratar de uma “questão cultural”. “Nós temos uma tradição de crucifixos em tribunais porque é um dado cultural. Cristo foi um inocente levado injustamente à morte. Todo juiz, quando vê a imagem de Cristo, deve se lembrar para que não faça o que fizeram com ele”, opinou o padre Jorjão. “Mesmo eu não acreditando no crucifixo, porque sou evangélico, mesmo eu não aceitando aquilo, entendo que tem uma questão cultural em nosso país”, frisou Malafaia. Já para Carlos Aires Britto, “é preciso ver Jesus como humanista. Ele foi, certamente, o mais autêntico dos seres humanos. É esse homem autêntico que é reverenciado nas repartições públicas, e não o fundador das igrejas cristãs”.

Ora, independente de fatores culturais ou da tradição, se o Estado é laico, não deve, em hipótese alguma, favorecer determinado credo em detrimento dos demais. Portanto, como bem enfatizou Daniel Sottomaior, “o fato de ser um dado cultural não faz que ele seja lícito. Também é um dado cultural o preconceito racial, a corrupção. São coisas terrivelmente brasileiras, estão na nossa cultura”. Ademais, líderes religiosos desrespeitarem o laicismo estatal é algo absolutamente corriqueiro. Porém, quando juristas como Carlos Aires Britto, que teoricamente deveriam zelar para que a Constituição seja devidamente cumprida, concedem declarações defendendo a permanência de símbolos cristãos em espaços públicos, devemos nos preocupar.

O “popularesco” e o “intelectual”

Já o destaque positivo do programa foi a postura lúcida do babalaô Ivanir dos Santos, que ressaltou a intolerância de alguns setores evangélicos em relação às religiões de origem africana. “A minha preocupação é com o pensamento político de alguns segmentos evangélicos – não são todos – com a lógica de intolerância e desrespeito. Um segmento religioso que demoniza a minha religião, dizendo que candomblé é coisa do demônio. Se isso vira Poder no Brasil, primeiro vão para a ‘fogueira’ a umbanda e o candomblé. Isso é a semente, na minha opinião, do fascismo, isso não é democrático. É contra isso que nós lutamos”, alertou Ivanir dos Santos. Nesse sentido, não foi acaso que o pastor Silas Mafafaia, sob o pretexto de que não se envolveria em passeatas com motivos políticos, recusou o convite de Ivanir para participar de uma marcha contra a intolerância religiosa promovida por líderes religiosos de matriz afro.

Em suma, o programa de Pedro Bial pareceu mais uma apologia ao sincretismo religioso (as intervenções do sambista Arlindo Cruz salientando que o importante é ter fé foram emblemáticas) do que propriamente um debate sobre o Estado laico no Brasil. Assim, o saldo final foi um programa tendencioso em favor dos religiosos (Daniel Sottomaior, único ateu presente, teve poucas oportunidades de apresentar o seu ponto de vista) e, não obstante, altamente superficial (as melhores discussões foram sumariamente interrompidas pelo apresentador Pedro Bial). Sendo assim, em relação a debates de cunho religioso, o “popularesco” Superpop de Luciana Gimenez foi mais consistente e interessante do que o programa Na Moral, do “intelectual” Pedro Bial.

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Francisco Fernandes Ladeira é professor, especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG