Se existe algo em nossa história que nos marca e nos faz lamentar é a profunda desigualdade social que estratifica nossa sociedade e, não fosse isso o suficiente, essa desigualdade que alimenta e é alimentada pela concentração de renda também se justifica e foi justificativa na forma pela qual a informação sempre foi tratada no Brasil. Explica-se. De um lado, o minúsculo grupo que dá forma ao que denominamos elite (pouco importando, nesse momento, se tratamos de uma elite econômica, política, educacional etc.) e que sempre foi a “consumidora-mor” de bens e serviços, sendo, portanto, elemento determinante na lógica do mercado, incluindo o de informações; de outro, o restante da sociedade, a “plebe”, para lançar mão de uma expressão mais do que arcaica, que não se classifica como “consumidora”, visto acessar somente o necessário ou abaixo disso e, consequentemente, absorver a informação muito mais como lazer de baixo custo do que, propriamente, como meta de crescimento pessoal e profissional.
Nesse sentido, ao longo das décadas, toda a produção de informações, seja do noticiário, seja vinculada ao lazer, trilhou uma lógica onde se distinguiu nas mais diversas searas o que seria “consumido” pela elite e o que seria “digerido” pela plebe, fazendo com que surgissem dois tipos de jornais, dois tipos de rádios, dois tipos de emissoras de televisão, além, é claro, de se distinguirem internamente os programas para os grupos sociais em questão. Não que tal coisa inexistisse nos demais países, mas sim, porque em nosso caso produziu-se uma segregação de informações, e não uma opção por sensacionalismo ou austeridade – exemplo encontrado em larga escala no exterior.
Mas o tempo passa, as coisas mudam e, por inúmeros fatores, que passam pelas políticas de distribuição de renda, pela alteração na própria estrutura do meio social brasileiro, pelo barateamento da tecnologia etc., foi possível a ampliação do acesso a diversos bens culturais sem que, por razões sociológicas e políticas, as segregações anteriormente produzidas fossem devidamente diluídas por essas mudanças. Ou seja, o ingresso nos nichos de consumo por segmentos sociais que há pouco nada significavam para o mercado, não indicou uma alteração significativa na visão que se construiu sobre a sociedade brasileira. Ao contrário, os elementos anteriores permaneceram ou, em alguns casos, a postura foi mantida ainda que o público fosse outro. E é esse último item que nos interessa.
Memória anulada, presente subvertido
Um bom exemplo reside na assim denominada TV por assinatura. Originariamente voltados a um público econômica e socialmente de “nível A”, os pacotes se popularizaram e cada vez mais incluem canais de notícias e de cultura no rol de valores mínimos, fazendo com que um grupo maior de pessoas acesse um tipo de informação que há pouco tempo seria solenemente ignorado por esse mesmo grupo social. Todavia, tal mudança indica – ou deveria indicar – uma alteração também no formato e no conteúdo desses mesmos programas em virtude da mudança de público e, surpreendentemente, não é bem isso o que ocorre. Se nos é possível detectar sutis alterações nos canais e programas de cultura que, sem modificarem seus objetivos, abarcaram regiões das cidades brasileiras e temas notadamente de classe C, os telejornais e/ou canais de notícias não acompanharam essa tendência, mantendo suas linhas editoriais num formato que atende somente a uma fração da sociedade.
Um bom exemplo é que, passadas algumas semanas das manifestações de junho, em todos eles a distinção entre “manifestantes” (para qualquer situação detectada no exterior) e “vândalos” (qualquer manifestação no Brasil) permanece, além de muitos presenciarem cenas que mereceriam compor qualquer obra de Salvador Dali: imagens “ao vivo” demonstravam uma coisa enquanto o apresentador ou apresentadora dizia outra. Num certo sentido, os telejornais brasileiros dos últimos tempos entraram numa competição direta com a arte surrealista!
Frente a tudo isso, talvez seja interessante a realização de pesquisas de opinião pública por áreas das cidades no intuito de se verificar há quantas anda o prestígio desses canais ou telejornais. Foi provado, ao longo do ano de 2012 com a transmissão do julgamento dos “mensaleiros” no STF, que a sociedade se rendeu ao retorno dos canais de televisão à ideia embrionária de serem eles um “meio de comunicação”: e não um conjunto que deseja “formar opiniões” indiscriminadamente.
No ano de 1931, Salvador Dali presenteou o mundo com seu quadro “A Persistência da Memória”, uma de suas obras mais famosas (aquela onde aparecem relógios moles, dependurados em galhos) e que trata da maleabilidade e relatividade do tempo, ou seja, numa perspectiva em que passado e presente podem compor um único cenário, a nossa concepção de realidade passa a ser algo fluído, de acordo com o artista. Assim, como metáfora, na medida em que os telejornais não se adaptam às novas condições apresentadas pela sociedade brasileira, seus conteúdos anulam a memória e subvertem o presente, fazendo com que o apresentador e sua fala sejam uma paródia daquilo que deveriam noticiar.
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Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal de Ouro Preto