Primeiro é preciso pensar nos resíduos gerados por todos nós, humanos, enquanto estamos aqui no planeta vivendo nossas vidas. Pense em todo o lixo que é produzido para que possamos nos manter vivos – roupas, alimentos, calçados, remédios e cosméticos, papéis… – e razoavelmente saudáveis. Depois, pense em onde tudo isso costuma parar: nos aterros periféricos, nas ruas, córregos e rios, nas margens das estradas.
A gente sempre vê lixos variados espalhados por quase todos os cantos e talvez poucos se importem em saber que tais lixos poderiam ter outra destinação. De um modo digamos, mais humanista e simples e natural, podemos dizer que se cada um cuidasse do seu lixo, já seria ótimo e pronto.
Mas onde estou querendo chegar? Não é na importância da política de resíduos sólidos recentemente instituída (mas não implementada) pelo governo federal e que, aliás, geraria empregos e seria ótima para todos (é preciso lembrar que há muita gente trabalhando com os variados processos de manejo do lixo e essas pessoas – não falo só dos garis, essa classe tão esquecida – merecem todo o respeito e consideração). Vou por este caminho para falar da programação da TV durante as tardes, pois é bem ali, que todo o lixo – como direi? Da falta de respeito para com o telespectador? Da falta de cuidado ao produzir tais programas? – vai parar.
Caras e bocas
É bem ali que todo esse lixo vai sendo triturado de forma que renda bons resíduos para todos os programas de todas as emissoras. É preciso aproveitá-lo, e aproveitá-lo bem; fazê-lo render e render…
Tudo começou porque assisti (sim, fiz isso para escrever isto) a um programa numa certa rede de TV no qual se falava da traição feita pelo marido de certa moça que dançava em um grupo de axé. A apresentadora do tal programa ficou durante o tempo todo do dito cujo falando somente isso e, inclusive, chamou jornalistas com caras sérias para que juntos, pudessem discutir a… traição. Parece que tudo aconteceu numa casa – a “roça” ou fazenda… sei lá; isso eu não assisto! – onde um bando de gente se engalfinha e fica confinada como naquela outra casa que chamam BBB (a pioneira desse tipo de lixo televisivo).
Pois então: o marido dessa moça estava na roça, digo, na fazenda, e a traiu com outra que por acaso, também estava lá (isso não é lindo?). E, então, dá-lhe imagens das moças – tanto da traída quanto da que traiu – em trajes mínimos e em poses de revista masculina; dá-lhe longos debates muito profundos sobre o que leva as pessoas a agirem assim, julgamentos rasos vindos de todos os lados. Em seguida, uma paradinha para o merchandising – porque lixo merece ser tratado com apreço, como disse no início – e depois, alguns sorrisos e caras e bocas e a volta ao sofá – já com expressões compungidas – no qual todos voltam, enfim, a falar da traição.
Ali já era possível ouvir o triturar cadenciado do lixo.
Traição, luxúria, preguiça
No outro dia, só se falava nisso de manhãzinha em outro programa da tal emissora – veja: para escrever eu precisava assistir aos desdobramentos do “caso” – no qual vários apresentadores continuavam se debatendo em torno da traição. Gente muito concentrada em entender os meandros desse comportamento humano. Aliás, não faria mal a presença de um psicólogo (há muitos dispostos a isso agora, digo, a explicar tais coisas numa linguagem televisiva), mas não chamaram nenhum e a coisa ficou só no bate-papo mesmo… Bem leve e despretensioso, afinal, é preciso começar a manhã assim, não é?
Bom, isso é o que dizem especialistas em qualidade de vida.
Enfim, o que se percebe – não desqualificando as pessoas que trabalham produzindo tais programas; todo trabalho é digno afinal ou pelo menos, deveria ser – é que há na TV toda uma estrutura que funciona muito bem em torno do pior que o ser humano produz.
Afinal, a matéria-prima é inesgotável e gratuita: primeiro, não é preciso pagar para que pessoas em busca da fama se deixem confinar e se deixem filmar e ajam de forma (sem julgamentos, apenas uma constatação) comum a qualquer criatura humana. Traição, luxúria, preguiça, os pecados todos, os vemos diariamente por aí, os cometemos também porque somos todos da mesma raça. Mas isso não deixa de ser algo ruim – e cada um sabe de si e ninguém deveria ficar por aí julgando ninguém, mas em se tratando de pessoas que fazem isso na TV, é outra história – e aí está a fonte desses programas.
Câmeras afoitas
É ali que produtores e pauteiros vão buscar suas matérias. Aqui já estou pulando de programa e falando de outro que se propõe a levar ao palco, famílias em pé de guerra. Tudo é discutido abertamente e quanto mais baixaria melhor.
A apresentadora do dito cujo está lá apenas para perfilar as pessoas no palco, para cutucá-las e fazê-las dizerem impropérios umas às outras. Seria cômico e bizarro se não fosse até, assustador, ver tanta roupa suja sendo (literalmente) estraçalhada e não lavada (porque o que se quer é refinar o ruim, lembrem-se: o lixo deve ser cuidadosamente triturado) ali, ao vivo.
No final de tudo – ufa! – uma psicóloga (eles têm uma, meno male) aparece para ser a voz da razão e, embora agindo mesmo como pessoa disposta a iluminar o caos – ninguém parece disposto a ouvi-la e tudo acaba como começou: aos trancos. Como eu também sou humana e não estou querendo julgar ninguém – isso é importante – devo dizer que assistir a esses programas é estar em um circo de horrores levemente engraçado às vezes e assustadoramente tenebroso outras vezes.
É uma catarse, sim: pessoas humildes e simplórias que sequer entendem o que a psicóloga diz, pessoas que se expõem assim diante de câmeras afoitas para captar suas expressões mais íntimas de revolta, dor ou alegria…
O final
E eis que o processo chega ao fim: o lixo das emoções humanas mais (talvez) deploráveis ou comoventes vai se esgotando. Lembremos: aquilo ali não é uma peça de teatro na qual atores se empenham em reproduzir as tragédias ou alegrias humanas intensamente para depois se recomporem, muito lúcidos, sendo capazes de se separar (deve ser dificílimo) do personagem e pronto. Aquilo ali é a vida real – até certo ponto – dizem os que produzem tais programas, que é apenas a vida real transposta para a tela da TV.
A vida real é feita, sim, de traições, muito sexo desenfreado, abusos variados, criancinhas abandonadas, mulheres raivosas e tudo mais que formos capazes de imaginar, mas também de pessoas que se respeitam e respeitam os outros. E respeito, claro, é algo inexistente em tais programas. Bom, mas eu fico pensando é em como toda a grandiosa orgia (para mim é isso) de emoções descontroladas foi parar na grade da programação da tevê aberta de um jeito, digamos, eficiente. Ninguém pode dizer que não é, porque se não fosse, já teriam ido atrás de outras coisas. E, penso ainda, em como essa orgia, se espalha como fogo em capim seco para outros programas tão ‘nobres’ quanto, para a web e aí, é algo infindável… Como sabemos o que é ruim tem mais chances de ser divulgado.
Assim, enquanto o governo luta para implantar uma política de resíduos sólidos que transforme nosso lixo em coisas mais nobres; a TV aberta faz o caminho inverso e luta sim, para que os resíduos emocionais mais dolorosos – ser traído, sofrer abuso, descobrir na tevê que a mãe é homossexual ou que o pai ficou com a melhor amiga etc. – se transformem em audiência e rendam frutos mercadológicos e atraiam anunciantes. É assim que a roda gira, sabemos que é assim, nada de errado nisso, mas bem que o povo que produz tudo isso, poderia (quem sabe?) pensar em debater tais coisas de maneiras mais produtivas e esclarecedoras.
Por enquanto o que se vê e ouve, e quase dá para sentir o cheiro, é o triturar desse lixo todo de forma muito eficaz, nas tardes da nossa – já tão criticada – TV.
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Ana Claudia Vargas é jornalista, Poços de Caldas, MG