Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por trás das grades (de programação)

Alguns políticos, em nome do eleitorado de seus estados, reclamam de um canal de televisão por exibir, há alguns meses, somente jogos do Flamengo e, eventualmente, Corinthians, em detrimento dos times considerados periféricos pela emissora. Na verdade, não viram da missa um terço.

É que estamos, enfim, acabando com as multidões, aglomerados, o coletivo, algo com que o capitalismo sempre sonhou. Porque ele não quer que nos juntemos para discutir, discordar, nos conscientizar. Quem diria, não é o socialismo que quer todo mundo alinhado em torno de suas parcas ideias.

Na medida em que compra os direitos de transmitir, por exemplo, todos os jogos dos campeonatos, a aludida televisão tira da população a chance de ver esses jogos.

Por enquanto, ainda se pode ir aos estádios, mas essa mamata vai acabar. Serão retirados seus assentos, porque ninguém terá condições de ver jogos aleatórios, de manhã, de tarde e à noite, conforme o interesse da televisão. Em seu entorno serão construídos muros altíssimos, inacessíveis à vista sorrateira de moradores de edifícios das cercanias. Só ficará o gramado para as disputas.

Revolução libertadora

Toca o telefone na sede rubro-negra, às oito da noite:

– A televisão tal quer que o Flamengo se apresente amanhã, às quatro da madrugada, para ser filmado o jogo contra o Corinthians, que poderá ser exibido na madrugada de sábado pra domingo, quando não haverá corrida de fórmula 1.

– Mas por que a essa hora?

– Para não atrapalhar a grade de programação da emissora. Os melhores horários serão ocupados por programas de maior audiência. Ah, tem outra: esse será um jogo fechado.

– Sem torcida? E como saberão de Flamengo e Corinthians, se não exibirem?

– A exibição será através de nosso sinal. É que vendemos os jogos.

Por ora, muitos dirão pelas ruas que a maioria da população não tem condições de assinar canais exclusivos de TV. Mas alguém esclarecerá a esses distraídos que a economia brasileira, desde a última ditadura, é programada para a sobrevivência de apenas 20% da população, que podem adquirir automóveis, computadores, máquinas pesadas, roupas caras e outras maravilhas do mundo moderno. Pois não há como dar salários e conforto a mais do que essa quantidade de gente. O resto é periferia. São, como disse um economista da época, “compradores de pentes” que alimentam os camelôs e as pequenas fábricas de fundo de quintal.

Hoje é o futebol. Daqui a pouco será também a missa. O religioso interessado na missa da Candelária, de Aparecida, da Penha ou da Sé (as mais cotadas) terá de assinar. Missas em circuito fechado, só para os ligados ao ritual. Terão, sim, animadores, como os programas de auditório. Acabarão os restaurantes frequentados por famílias. A comida será entregue também para assinantes. O apelo “você não precisa sair de casa” levará à reflexão os casados, obrigados a conviver 24 horas diárias com a mulher ou o marido mal escolhido. Quem quiser sair para se aliviar um pouco não terá para onde ir.

A menos que o povo desligue as tomadas e aceite a solidão (segundo Paulo Francis, “narcisismo sem plateia”), até a próxima revolução libertadora viveremos entre as grades virtuais.

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Sylvio Abreu é escritor