Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os devoradores

Diogo Dantas, 26, mudou seu modo de ver televisão. Há um ano, o analista de marketing, que mora em São Paulo, comprou uma Apple TV.

Com o aparelho, que funciona como uma espécie de ponte entre TV e internet, ele usa a plataforma sob demanda Netflix e faz downloads para assistir a tudo o que quer, na hora e do jeito que mais lhe satisfaz.

Dantas é um exemplo da transformação que a tecnologia trouxe ao consumo de entretenimento.

Graças às variadas opções de plataformas de programação sob demanda no Brasil, que cobram preços mais baixos do que os de TV paga, é cada vez mais comum que os espectadores montem suas próprias grades e, quando envolvidos por alguma série, assistam a tudo de uma vez em maratona (ou “binge”, como é chamado o hábito nos EUA).

O fenômeno foi citado pelo ator Kevin Spacey durante um festival de TV em Edimburgo, em agosto: “O público quer o controle, quer liberdade. Se quiser assistir em maratona como vem fazendo com House of Cards’ [seriado que ele protagoniza no Netflix], temos que permitir”.

Dantas está usando essa “liberdade”. Fã de seriados como “Homeland” e “Walking Dead”, devora tudo: baixa e assiste a vários episódios de uma vez só, faz pesquisa nas redes sociais, lê o que acha pela frente. Para ele, há um fator fundamental que não foi citado por Spacey.

“Tem a ver com ansiedade. Você sabe que a coisa está disponível e quer consumir. Quem hoje não é ansioso?”, pergunta o analista.

Já o publicitário Luiz Fernando Silveira, 25, teve motivação financeira para aderir ao novo comportamento. Colocou os gastos com a TV na ponta do lápis e viu que era mais vantajoso assinar uma internet mais rápida e o Netflix. O serviço custa R$ 16,50 ao mês e o Vivo Play, R$ 15,90, ambos bem abaixo dos preços da TV paga –o pacote mais simples da Net custa R$ 39,90, e o da Sky, R$ 49,90.

Agora, Silveira diz que espera que as suas séries favoritas acabem para assistir a tudo de uma vez só. “Foi o que fiz com o Lost’, já sabia do fator viciante”, conta.

Mas há quem opte pelos serviços sob demanda justamente para fugir do vício.

A produtora Érika Araújo, 29, diz que aderiu a esse jeito de ver TV numa tentativa de evitar que o filho Tomé, 3, fique condicionado a horários de programas. “Não queria que ele ficasse dependente.”

“Preço razoável”

Psicólogos ouvidos discordam sobre os efeitos do fenômeno da TV sob demanda. O professor José Leon Crochík, do Instituto de Psicologia da USP, relaciona o “binge” menos com ansiedade e mais com a compulsão, a busca incessante por satisfação.

“Estamos mais ansiosos para concluir o que começamos. O prazer, a atenção e a compreensão do que fazemos ou assistimos diminui. Isso se aproxima de compulsão: uma atividade que se repete infindavelmente e cujo sentido é a própria repetição.”

A professora da PUC Rosa Maria Farah prefere não focar o aspecto negativo do novo hábito. “Quem tem propensão à ansiedade vai expressar isso, mas formas de lidar com a tecnologia variam como os tipos humanos.”

Para Farah, o aumento de escolha do espectador é um avanço. “As pessoas se sentem capazes de uma postura menos passiva”, afirma.

Para o mercado, a ansiedade é boa, por garantir a fidelização dos assinantes.

“Essa nova forma de distribuição nos ensinou uma lição que a indústria fonográfica não teve: dê às pessoas o que elas querem, quando quiserem e na forma que preferirem a um preço razoável e elas vão pagar em vez de roubar”, disse Kevin Spacey.

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TV convencional frustra crianças da era Netflix

Anita Sousa Goitia, 2, não entende muito bem como funciona a televisão. A maior parte dos programas a que assiste está em plataformas de TV sob demanda como o Netflix e o Net Now, ou até mesmo no YouTube.

Nas raras vezes em que assiste a programas no seu horário de exibição normal, Anita pede que a mãe pare o programa quando quer ir ao banheiro. É comum que peça para assistir ao programa novamente quando termina.

“Eu não gosto que ela veja TV por causa dos comerciais, então ela tem um ritmo diferente e fica frustrada quando quer ver um programa e não pode”, diz Tereza Cândida Sousa, 32, a mãe de Anita. “Ela ainda não entendeu a lógica da TV convencional.”

Tereza também faz parte do grupo que mudou de hábito e mergulhou de cabeça na TV sob demanda. “Inicialmente, assinamos por causa de Breaking Bad’, mas agora a programação infantil é o que domina”, diz.

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Isabelle Moreira Lima, da Folha de S.Paulo