Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Educação e trabalho

Dizem que para bom entendedor meia palavra basta, que seja um pingo, tornado letra – sutilezas do senso comum, astúcia de editores ou simples paranoia em tempos de tensão pré-eleitoral? Os noticiários televisivos que o digam. Aliás, nem precisam, pois já o fazem de modo velado e nada ingênuo, a fim de tanger o gado e conduzir em manada a opinião pública para os velhos currais de sempre (senão matadouros). E nem é preciso dizer com quem andas para que se diga quem és – quem assistiu ao JN [edição de 22/10/2013] pode tirar as próprias conclusões, claro que munido de um pouco mais de informações.

A matéria em que se apresentaram os dados do estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com ênfase no desafio de se preparar o jovem (principal afetado pela falta de emprego) para o mercado do trabalho, apesar da redução do desemprego no Brasil, foi seguida da notícia sobre a mudança do calendário escolar de 2014 na rede pública estadual de São Paulo, em virtude da Copa do Mundo, para que não haja comprometimento do ano letivo – contraponto a salientar quão cuidadoso e preocupado é o governo paulista quando se trata de educação, especificamente, da formação profissionalizante.

Para quem desconhece (e para que se faça a devida conexão), é conveniente lembrar que o currículo do estado paulista é voltado basicamente para o “mundo do trabalho”, a ponto de se incorporar discursivamente a importância da educação para a formação profissional, de preferência técnica, principalmente no ensino médio, em substituição ao discurso predominante, até há pouco tempo, da formação do indivíduo (“crítico”) para a vida, para o exercício da cidadania e do convívio social. Mudança que já tem surtido efeito, impregnando o imaginário social (e o dos jovens estudantes) com essa visão profissionalizante, principalmente nas famílias que veem nisso a única forma de ascensão social para os filhos. Não que não exista carência de mão de obra técnica qualificada tampouco que tal formação não represente efetivamente a possibilidade de ascensão social, sem que se exclua uma visão minimamente crítica, mas parece um tanto limitadora essa perspectiva pela restrição, de certo modo, da formação educacional à “produção” de trabalhadores mais qualificados, mesmo que muitos desses jovens possam ir além dos cursos técnicos e alcançar (pelo próprio esforço) o ensino superior.

Política nada meritória

A referida matéria sobre a mudança do calendário escolar mostrou alunos da rede estadual (observar que logo no início da reportagem a câmera focaliza alguns alunos na sala de aula e em seguida busca a professora à frente da lousa, onde se vê claramente escrito “Projeto Profissões 2013”), e ao longo da matéria uma repórter conversa com alunos do projeto do Centro de Estudos de Línguas (CEL), referendando a importância de um segundo ou terceiro idioma, oferecido gratuitamente a estudantes a partir do 7º ano do Ensino Fundamental – estudantes que estariam, portanto, mais bem preparados para o mercado de trabalho e, segundo a reportagem, para recepcionar os turistas durante os eventos esportivos (Copa e Olimpíadas). Pode-se inferir que o governo paulista de alguma forma antecipa-se aos problemas (falta de emprego para os mais jovens, segundo os dados da OCDE) e preocupa-se com a formação dos jovens na escola pública, haja vista as adequações no calendário escolar.

Todavia, é conveniente lembrar uma vez mais quão cioso é o governo tucano paulista com a construção da imagem da escola pública, como se não houvesse inúmeros problemas e dificuldades na rede de ensino – e nesse aspecto é sempre bom contar com o apoio da mídia amiga, uma vez que é praticamente impossível obter, principalmente quando se trata de casos de violência ou agressões, autorização de imagem, filmagem ou entrevista com professores, servidores ou mesmo diretores no recinto escolar. Isso sem mencionar a acachapante rotina burocrática imposta aos professores, as limitações ao trabalho docente e os baixos salários, numa política que não tem nada de meritório.

Instrumentos para uma autonomia cidadã

E em se tratando de política educacional, a opção pela formação profissionalizante pode até representar um caminho, uma via que, no entanto, não deve ser de mão única ou excludente, como se disse, de uma visão mais crítica e de participação social tampouco limitadora dos sonhos dos jovens ou de perspectivas que contemplem a formação superior e a pós-graduação. Espera-se que tal opção não esconda, no fundo, um ranço classista ou uma cisão social, em que uma elite política (e seus filhos) teria acesso à formação de excelência superior para ocupar cargos de comando, seja em governos ou nas empresas amigas, enquanto aos alunos das escolas públicas o horizonte do mundo do trabalho (como mão de obra técnica), quando muito uma faculdade privada (paga com sacrifício ou financiamento público). Mais que modelos de gestão, trata-se da política de um partido, há duas décadas no comando do estado de São Paulo – e é pertinente não esquecer que as escolhas e os modelos políticos sempre trazem suas consequências, a exemplo da “era FHC”, que representou “uma tentativa de desmonte do sistema de ciência e tecnologia e da pós-graduação”, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ainda no âmbito da Educação Superior significou, portanto, “extrema desigualdade de acesso e permanência, na exclusão de milhões de jovens desse nível de ensino, em especial negros e indígenas, na privatização, e no ensino de baixa qualidade” [BITTAR, Marisa. BITTAR, Mariluce. História da Educação no Brasil: a escola pública no processo de democratização da sociedade. Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, nº 2, p. 157-168, Jul.-Dez., 2012].

Não se deve incorrer em generalização tampouco ser ingênuo diante dos noticiários, sabendo-se que em época pré-eleitoral costuma-se implementar projetos a toque de caixa entre outras maravilhas para se ter farto material para as campanhas propriamente ditas. Entretanto, a educação deve ser mais que um projeto partidário, mais que seu viés profissionalizante (ainda que importante para um país com muitos déficits e carências nessa área) – educação de qualidade deve ofertar verdadeira autonomia de escolhas, criticidade, dignidade e igualdade de oportunidades para uma formação cidadã e de convívio social, a fim de que cada pessoa possa decidir sobre a própria vida, com capacidade de fazer a sua “leitura de mundo”, inclusive dos pingos e dos is de quaisquer reportagens. Aos docentes cabe a “subversão” de oferecer instrumentos aos alunos (e não o mero adestramento) para tal autonomia, enfim, ensinar tais caminhos, independentemente de políticas partidárias.

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Afonso Caramano é funcionário público e escritor, Jaú, SP