O tema principal do 30º capítulo da novela “Cheias de Charme”, exibido num sábado, 19 de maio de 2012, foi o clipe “Vida de Empreguete”, no qual o trio de protagonistas canta, com muito humor, as agruras do cotidiano de uma empregada doméstica.
Sem que elas saibam, uma rival posta o vídeo na internet antes do seu lançamento oficial, produzindo curiosidade geral. Inúmeros personagens da trama são vistos assistindo ao clipe diante do computador. Até que, ao final do capítulo, o espectador vê na tela da televisão o endereço on-line onde poderia encontrar o vídeo.
Na segunda-feira, 21 de maio, quando finalmente foi exibido no 31º capítulo da novela, o clipe já havia sido visualizado 2 milhões de vezes no site da emissora. A estratégia, chamada de “transmidiação”, não era inédita na ocasião, mas é considerada a mais ousada e bem-sucedida experiência do gênero já realizada na Globo.
Pela primeira vez, um conteúdo original essencial para a trama “nasceu” fora de seu habitat principal. Diferentemente de outras ações, marcadamente promocionais, esta permitiu, de fato, que a trama avançasse em outra mídia, produzindo o efeito, para usar o jargão dos comunicólogos, de uma “narrativa transmídia”.
Nos capítulos seguintes, à medida que o vídeo continuava despertando interesse (passou de 10 milhões de visualizações), os personagens comentavam o assunto, citando números reais e fazendo com que o público, de certa forma, se tornasse também participante da trama.
Coautor da obra
Esta experiência em “Cheias de Charme” orientou as principais reflexões feitas em um encontro realizado esta semana na USP pelo Centro de Estudos de Telenovela, sediado na Escola de Comunicações e Artes (ECA), e pela Globo Universidade, sob o título “Estratégias de Transmidiação na Ficção Televisiva Brasileira”.
Por trás do nome pomposo do encontro, e também do livro lançado na ocasião, são visíveis as dificuldades dos pesquisadores para, até mesmo, definir com precisão o próprio conceito principal.
A exploração comercial de conteúdos de uma mídia em outras tem sido feita há muito tempo pelos publicitários, em ações chamadas “crossmedia”. Estas seriam operações destinadas à “propagação” de um mesmo conteúdo, ainda que com diferentes roupagens, com objetivo meramente promocional.
A ação em “Cheias de Charme” mostraria uma possibilidade de “expansão” de um determinado conteúdo. Tem a função, obviamente, de reforçar os laços do espectador com a novela, mas vai além, ao exibir um conteúdo original em outro ambiente.
Toda novela da Globo tem, desde 2010, um “produtor de conteúdo de transmídia”, encarregado de propor ações paralelas à trama em outras mídias. Segundo Tiago Campany, coordenador de multiplataforma da Globo, nada é feito sem a aprovação dos autores e diretores da novela.
Ações mais corriqueiras incluem a criação de blogs de personagens, nos quais são discutidos temas correlatos às tramas, como o de Melina (Mayana Moura) em “Passione” e o de Sueli Pedrosa (Tuna Dwek) em “Sangue Bom”.
Ainda que não afete diretamente o andamento da novela, este tipo de experiência alarga o conceito de autoria. O produtor de conteúdo “transmídia” passa a ser, ele também, coautor da obra. A ampliação deste modelo abre a possibilidade de se falar em “autoria corporativa” de uma novela.
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Mauricio Stycer é colunista da Folha de S.Paulo