Ao comentar a Civilização do Espetáculo (Alfaguara), Mario Vargas Llosa definiu o panorama cultural que nos cerca, engole, enterra. Ele descobriu numa Bienal de Veneza, há 12 anos, que detestaria ter qualquer daquelas obras na sua casa, por sinal decorada com trabalhos de modernistas como os alemães Max Ernst e George Grosz. Então se deu conta de que os escritores de sua formação tinham ido parar nas catacumbas. E concluiu: quase tudo antes considerado “cultura” tinha virado entretenimento banal.
Olhando em volta vemos que a maioria dos filmes nacionais, apesar dos 115 lançados em 2013, vai mal de bilheteria, que não chegamos nem perto da qualidade do cinema argentino e que a crise pipoca de todos lados quando o tema é cultura.
Carlos Rottemberg, empresário teatral argentino, deu o pulo do gato: “O segredo dos bons atores na Argentina é o teatro independente” (El País, 7/2/2013). “Somos a terceira potência teatral, depois de Londres e Nova York.”
O drama do teatro é que as peças fracassaram com o público jovem, a dramaturgia brasileira foi contaminada pelo naturalismo das telenovelas globais – aliás, não raro encenada pelos mesmos atores. Faltam bons roteiristas para a TV e a mesmice impera. Como Chico Buarque costuma dizer, “o país esta idiotizado e eu tenho medo de ficar também”.
A saída para bilheterias é quase sempre o humor, a cura pela comédia, ou pelos efeitos especiais vazios de texto. Ah, claro, a importação dos musicais da Broadway, às vezes bons, às vezes ruins, um filão rentável, mas falta a identidade daquilo que podemos chamar de nosso. Como as revistas teatrais dos anos 1950, das quais pouco lembramos. Para ficar no nacional, Chico Anísio dizia que nosso cinema se perdeu quando trocou a trilha das chanchadas pelo Cinema Novo. Agora a moda é levar aos palcos o que deu certo nas telas. Vem aí “Se Eu Fosse Você”, “Os Filhos de Francisco” e “Cidade de Deus”, adaptados para o teatro musical, uma tendência na Broadway e no teatro londrino.
Aparição rápida
A verdade é que os bons roteiros estão desaparecendo, há muita repetição e remakes. Se o próprio George Cloney anda declarando que as histórias estão se esgotando no cinema americano, o que poderíamos dizer das nossas. Antonio Fagundes, dos mais bem sucedidos na TV e nos palcos, com peças recentes como “Vermelho” sobre o artista plástico Mark Rothko, e “Tribos”, sobre a surdez, livra os atores ou os textos de concentrar sozinhos a culpa pelo fracasso. “Falta paixão no palco, mas também na plateia”, disse. Numa entrevista a O Globo (23/3/2013) ele mirou os jovens atores. “Ano passado assisti a 80 espetáculos, no ano retrasado a 12 e, neste ano [nos três primeiros meses de 2013], a 30. Não vejo os jovens atores nas plateias. Vejo as pessoas mais preocupadas em aparecer do que em comunicar.” Lembrou com saudades do tempo em que os teatros ficavam lotados de quinta a domingo e girou a metralhadora para a falta de leitura dos brasileiros… e dos livreiros. “Nada contra os balconistas, mas os livreiros não buscavam títulos em computador, sabiam o que estavam vendendo. Você perguntava por um livro e ele vinha com a dica de mais dois ou três.”
É comum encontrar em livrarias inglesas atores como o londrino Michael Caine ou o irlandês Kenneth Branagh, duas gerações, fuçando as estantes à vontade sem ser incomodados – segundo os livreiros britânicos, cena corrente. No Brasil o ator desembarca na Globo e acha que chegou lá. Esquece palco, tela, livro. Concentra-se no espelho.
Fernanda Montenegro já declarou diversas vezes, a última num programa Starte recente da Globo News, que artistas há muitos, mas atores… “Se você não conseguir dormir ou existir sem atuar, se essa falta tornar a sua vida insuportável, então, acredite, você é um ator. Se não, esqueça, vai fazer outra coisa, namorar, surfar, desfilar.” Esses jovens atores ex-modelos que aparecem nas novelas hoje, cabelo para cá, cabelo para lá – ela declarou uma vez –, “estão mortos quando a primeira ruga aparecer. Nas entrevistas em revistas de TV eles só falam do apartamento, da decoração, da roupa, do carro que já têm ou querem comprar”.
A crítica teatral mais temida do Brasil, Barbara Heliodora, no mesmo Starte semana retrasada, comemorou seus 80 anos dizendo que não sente nenhum prazer em demolir um espetáculo. Mas as coisas pioraram muito. “Veja os atores/autores de hoje”, ela declarou, num muxoxo. “Às vezes é um verdadeiro horror. Muito pior do que escrevo nos textos. Como é que não percebem que estão apresentando tamanha porcaria… Com cinco minutos você já sabe que [a peça] não tem salvação.”
Para O Globo (31/8/2013) Barbara encaminha e-mails ao editor, junto com as críticas. “Meu pobre Shakespeare sofreu mais um triste golpe nessa bobajada insana”. “Há momentos em que a profissão de crítica é realmente dolorosa. Este foi um deles.” “Estou começando a encarar o suicídio como opção festiva, comparada com o que ando vendo.” Ela quer parar. Mas acha que a má crítica não tira ninguém do espetáculo. “Só não posso enganar o leitor dizendo que vá ao teatro quando a opção é péssima.” A boa crítica, no entanto, para Bárbara, lota um teatro. Uma responsabilidade.
Mas Tom Stoppard, o dramaturgo checo-inglês de maior evidência no mundo do teatro, sabe, e repete, “uma peça ruim tira o espectador das salas por um ano”. Ele não pode se levantar no meio como no cinema, tem de sofrer até o fim. Não volta tão cedo. Stoppard, um top, não tem nenhuma de suas 30 peças e 17 roteiros traduzidos para o português. “Rock n’ Roll” só entrou meteoricamente em cartaz no Rio e São Paulo em 2008 pela teimosia de um carioca solo, Felipe Vidal, que praticamente bancou o prazer (que nos deu) do próprio bolso.
“A intenção é divertir”
Temos de comemorar as raras vezes em que Barbara diz “esse espetáculo paga uma boa parte dos muitos horrores que eu vejo! Não perca.”
Isso acontece com o bom teatro italiano de Eugenio Barba quando vem ao Brasil, com os oásis que são as peças do americano Bob Wilson que para nossa sorte se encantou com o Brasil e o SESC com ele, com os experimentos do The Wooster Group interpretando “Hamlet”no palco ao mesmo tempo em que projeta o filme “Hamlet” estrelado por Richard Burton, em 1964. E claro, com Walderez de Barros em “A Casa de Bernarda Alba” de Federico García Lorca, com Marieta Severo em “Incêndios”, de Wajdi Mouawad, com o Grupo Tapa. Ou quando temos a sorte de um ator como Marco Nanini escolher o maravilhoso texto do francês cult George Perec para seu monólogo (elogiadíssimo por Bárbara) “A Arte e a Maneira de Abordar seu chefe para Pedir Aumento”
Teatro, declarou a atriz, encenadora, coreógrafa, dançarina, diretora argentina Carlota Ferrer, tem de ser incômodo (El País, 1/2/2013). Seriado de TV tem de ser como os do GNT, “Sessão de Terapia” ou a série inglesa “Downton Abbey”. Cinema, diz Eduardo Coutinho, não pode ser engajado, “filme militante é uma tragédia” (Folha de S.Paulo, 30/10/2013). Nem levinho demais que o público esqueça ao levantar da cadeira. Nem repetitivo quando estoura na bilheteria e se multiplica em I, II e III. Nem tão ruim de encenação e texto que não dê vontade de ser brasileiro.
Revistas de cultura não podem desaparecer como aconteceu este ano com Bravo junto com outras quatro e o boato de mais sete que serão canceladas. Cultura não pode sair de circulação. Modernidade não é barbárie.
Eis que surge Arte 1. Como?
Rogério Gallo, diretor do primeiro canal de TV brasileiro inteiramente dedicado à cultura e arte, passou três anos hibernando a ideia junto com o Johnny Saad, na Band. “Várias vezes a ideia foi por água abaixo, quase furou.” Mas em dezembro de 2012, sem estardalhaço (“queríamos o direito de errar”), o Arte 1 foi para o ar em caráter experimental, uma degustação. Em março de 2013 entrou para valer. O público da TV fechada nem acreditava que ia vingar no Brasil, mas o canal entrou nas operadoras Net, Sky, Claro, GNT, Vivo, Oi, sem cobrar um centavo a mais dos assinantes. Hoje são 10 milhões de assinantes abertos ao fino da arte, degustando a música do venezuelano Gustavo Dudamel ou Yo Yo Ma, assistindo “A Fita Branca” de Michael Hanecke ou “O Olhar Estrangeiro” de Walter Salles Jr e “A Nós a Liberdade”, de René Clair, aos documentários ou docu-dramas sobre Portinari, Niemeyer, Caravaggio, Jean-Michel Basquiat. Além do melhor do design, do estilo, da gastronomia, da literatura nacional e internacional.
Nós merecemos? Claro, Arte 1 veio para ficar. Gallo garante, e não é arte para elite. É para todo mundo, uma tentativa de captar a atenção das classes emergentes e principalmente dos jovens.
“Temos 15 mil ‘likes’ no Facebook, Dilma Rousseff já nos tuitou umas três vezes depois que assistiu a “Rocco e Seus Irmãos”, ao “Nelson Cavaquinho” do Leon Hirschman e ao especial Nelson Freire.” Fernanda Montenegro não sai do canal, Patricia Kogut já deu duas notas 10 para o Arte 1 na sua coluna crítica de O Globo.
Nós merecemos? Gallo diz que arte não é para iniciados, sofisticados. É para todos. “O público só precisa de uma chance para gostar.” Ele cita o fenômeno das 100 mil pessoas amontoadas no Ibirapuera para ver os espetáculos. Ou as filas quilométricas na porta dos museus e nas viradas da noite nas mostras do Centro Cultural Banco do Brasil. “É só dar acesso, as pessoas vão. Os iniciados vão naturalmente. Mas os que não podem ir ao Louvre ou gastar 300 reais em um bom espetáculo vão para as filas ou acessam o Arte 1 sem sair de casa. E nada de ranço de TV educativa. É arte, com visual colorido, contemporâneo. A intenção é divertir. Por exemplo, ao ouvir Tchaikovsky ficam sabendo que o compositor adorava beber até que resolveu entrar na linha e pediu água num bar. Morreu de cólera”.
Espaço qualificado
Gallo tem 25 anos de TV, esteve na formação da MTV, e tem uma filosofia: “A da água mole em pedra dura…” Tanto bate até que fura. O canal é divulgado de boca a boca, nada de campanha de massa. E atrai um público novo para um conteúdo novíssimo. Uau!, nós merecemos?
O conteúdo vem da RAI, da BBC, da TF1, da NHK japonesa, da ORF australiana, canais públicos, um garimpo do melhor da TV europeia que Gallo faz sozinho. E o melhor da nacional como o acervo da Videofilmes de João e Walter Salles, os filmes de Eduardo Coutinho, além de vídeos e minidocumentários em jornalismo.
Um espaço qualificado, um oásis.
Nós merecemos?
Rogério Gallo, 46 anos, formado em Jornalismo com pós-graduação em História da Arte admite que “várias vezes pensamos que não íamos conseguir”. Mas insistiram, conseguiram. O Arte 1, canal da Rede Bandeirantes que não tem nada a ver com a Band, prepara a primeira pesquisa qualitativa para janeiro. E nem precisamos do resultado para saber que eles apostaram e ganharam.
Sim, nós merecemos.
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Norma Couri é jornalista