Uma das mais instigantes abordagens sobre o lugar da telenovela na cultura latino-americana (brasileira por tabela) vem do filósofo e comunicólogo Jesús Martín-Barbero, na destacada obra Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia(Ed. UFRJ, 2003), traduzido para 12 idiomas. Em entrevista para a Assessoria de Imprensa da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em 2011 (disponível aqui), afirmou: “Quando comecei a escrever sobre as telenovelas eu era um filósofo, com pós-graduação em Psicologia e Semiótica. Meus colegas pesquisadores e professores não entendiam por que eu perdia meu tempo com o que eles chamavam de ‘a cultura da miséria’.”
Martín-Barbero relata que seu interesse nas telenovelas surgiu depois de ler uma crônica sobre a semana das famílias da periferia de Bogotá (Colômbia). De acordo com aquele texto, essas famílias tinham uma única refeição completa da semana nas sextas-feiras, quando se reuniam em pequenos restaurantes para jantar na mesma hora em que era transmitida uma das mais famosas novelas mexicanas, Os ricos também choram. Disse Martín-Barbero na entrevista de 2011: “Para os pobres, os que menos contam culturalmente, aquele era seu momento poético. Algo de seus modos de sonhar passa pela sua relação com a telenovela.” Em suas pesquisas, o teóricotrabalhou com etnografia da audiência e adotou a prática de assistir às telenovelas junto com famílias, para perceber como interagiam com as narrativas, as personagens e tramas. Uma das conclusões é que o público tem mais prazer em relatar do que em assistir a cada capítulo: “A melhor coisa que pode acontecer a alguém que acompanha as novelas é que, no dia seguinte, alguém pergunte o que aconteceu no capítulo anterior. Se começa falando sobre a novela e, 10 minutos depois, já se está contando sobre a própria vida. Então, a telenovela é um pretexto para falar sobre a vida cotidiana”, declarou Barbero, que passou a analisar a recepção de telenovelas na Colômbia, Peru, Argentina, Chile, México e Brasil.
Jesús Martín-Barbero defende que a televisão, é um veículo que permite expressar as dinâmicas culturais populares como nunca antes. Porém chama a atenção para as contradições do meio que está nas mãos dos grupos hegemônicos da América Latina e se torna instrumento de poder político e econômico. Compreender esta contradição da televisão é uma lacuna entre a intelectualidade latino-americana, segundo Barbero, “falta a eles poder ver a maneira como a TV se implica com a vida cotidiana das pessoas. Mas para isso é necessário romper com certa soberba, que faz com que acreditemos que sabemos o que as pessoas pensam e sentem. Os intelectuais não querem levar a sério o que o povo gosta. Porque é muito fácil dizer que o povo não tem gosto e, se por acaso tem, é mau gosto”, explicou.
Abrimos este artigo com esta reflexão acadêmica para chamar a atenção para a necessidade de uma interpretação despida de paixões do recente frisson causado pela exibição do último capítulo da telenovela de horário nobre da Rede Globo de TV, Amor à Vida, em 31 de janeiro, que alcançou o alto índice de 44% de audiência, de acordo com o Ibope.
Buscando um caminho de interpretação
Acompanhando o que foi veiculado em websites, blogs e postagens em mídias sociais desde o início daquela semana com a expectativa então criada se haveria ou não um “beijo gay” no desfecho da telenovela e depois do fato consumado, podemos identificar pelo menos três posições do público: 1) de demanda e depois de celebração da parte de pessoas homossexuais e simpatizantes, por conta do que consideram um avanço e o reconhecimento das lutas por direitos deste segmento; 2) de cobrança e depois de condenação de pessoas religiosas e não-religiosas, por conta do que consideram “nojento” ou uma afronta da emissora, do autor da trama e dos atores envolvidos à família brasileira que luta por se preservar das ameaças da “ditadura gay”; 3) de pessoas identificadas como críticas, algumas do espaço acadêmico, alegando ser tudo isto “perda de tempo”, “lixo”, “bobagem”, com uma parcela a perguntar do que tratava tal discussão, já que não assistem às novelas.
Retomando as teorias de Martín-Barbero que inspiram esta reflexão, é possível dizer que os dois primeiros grupos, de alguma forma, afirmam a compreensão de que as mídias na atualidade, e, particularmente a TV, são um termômetro social e “expressam as dinâmicas culturais como nunca antes”. É inegável, e objeto de muitas pesquisas, que a televisão tem, no Brasil, um potencial mobilizador e é espaço de conexão e de pertença de pessoas. Fortalece e recria imaginários e identidades, sendo uma referência de mundo para boa parte da população. Entre os grupos citados acima, de forma positiva ou negativa, dois deles entendem que as dinâmicas culturais estão ali refletidas.
Alguém pode perguntar: “Mas por que não discutem de forma tão apaixonada temas de um programa de jornalismo ou de entretenimento, de humor, por exemplo?” Um caminho de resposta é que telenovela é melodrama e melodrama é literatura dialógica ou uma espécie de gênero carnavalesco [cf. Martín-Barbero, Dos meios às mediações] em que o que é narrado e a vida do público, ou, os espaços entre autor, atores e telespectadores, se mantêm abertos a afirmações, reações, com base em desejo e expectativas diversas, tudo atravessado, claro, pela indústria cultural.
Portanto, o gênero melodrama somado às características do antigo folhetim (forma de narrar em parcelas/capítulos), de acordo com Martín-Barbero, reveste-se de matriz cultural – uma estrutura narrativa que, ainda que mantida e repetida pelo tempo, está sempre sendo atualizada produzindo novos sentidos/significados na vida de um público dado. Quer dizer, há reapropriação e recriação de acordo com o público e o contexto. Assumir que o melodrama tem o seu apelo cultural na América Latina e que é matriz da telenovela, é base para a afirmação de que a telenovela está arraigada na formação cultural latino-americana, e, no nosso caso, brasileira. É lazer, entretenimento, que ousa refletir tramas da vida cotidiana, com a expressão de padrões culturais de gênero, de faixa etária, de etnias, de classe, e com eles, ideias, valores, que refletem tendências hegemônicas, mas também emergentes. A mobilização em torno de certas histórias e o desprezo a outras são sinalizadores desse termômetro. A incidência de temas também. E assim chegamos ao tema do homossexualismo.
Um modo de ver o caso: pela memória
Qualquer tema ligado à sexualidade humana desperta paixões, particularmente quando uma cultura é construída sob os princípios patriarcais de forma tão intensa como é a cultura latina, em que as bases cristãs-ocidentais estabeleceram o ato sexual como uma prática cujo objetivo exclusivo era a procriação, sendo os filhos a continuidade da família e sua herança. A dimensão da sexualidade relacionada à realização plena da pessoa e ao prazer é descartada e classificada como perversão e desvio do objetivo maior. Resultado disso é a submissão da mulher ao poder do homem (pai, marido, irmãos, tios, filhos) e a repressão do corpo. No entanto, esta história milenar tem experimentado pressões por mudança em tempos recentes. Já na Revolução Francesa tem início, com as noções de cidadania, igualdade, liberdade, um processo de transformação na compreensão de família e no direito de família, com a inserção da dimensão da afetividade. Os movimentos feministas dos séculos 19 e 20 vão consolidar este processo fundamentado pela psicanálise (teorias de Freud), pela desnaturalização do poder sobre o corpo (teorias de Foucault) e pelo desenvolvimento da biociência (separação da sexualidade da reprodução humana – pílula anticoncepcional). Daí foi um passo para o fortalecimento dos movimentos homossexuais, a consolidação da noção de homoafetividade e a busca por direitos sexuais, que têm marcado o século 21 em todos os continentes.
Como as mídias e, particularmente a TV e suas narrativas, são termômetros sociais, como deixar de fora esta atmosfera? Apesar de ainda termos padrões sociais patriarcais hegemônicos fortemente expressos em todos os gêneros midiáticos – do jornalismo, ao entretenimento, à publicidade – é inegável que a pressão do processo sociocultural transformador seja perceptível nos conteúdos.
São muitas tramas de entretenimento na TV que representaram relacionamentos homossexuais e/ou deram ênfase a personagens homossexuais com diferentes ênfases. Até a passagem dos anos 1990 para os 2000 prevaleceram as representações hegemônicas (patriarcais) da homossexualidade: as personagens eram problemáticas, afeminadas-afetadas-passíveis de riso (mordomos eram alvo boa parte das vezes) ou más. O domínio da Rede Globo na produção e audiência de telenovelas a levou a experimentações e aberturas ao processo sociocultural em curso e a mudança veio em 1995, quando na telenovela A próxima vítima Sílvio de Abreu se tornou pioneiro ao colocar, de forma aberta, um jovem casal gay com comportamento e vida como de qualquer casal heterossexual Os personagens Sandrinho (André Gonçalves) e Jefferson (Lui Mendes) tornaram-se paradigmáticas na história do homossexualismo nas telenovelas. Houve consequências negativas referente a isso – o ator André Gonçalves foi agredido no banheiro de uma boate carioca, por causa do personagem – mas houve boa aceitação do público nas pesquisas e os dois terminaram juntos, com o apoio das famílias personagens.
Já em 1998, a telenovela Torre de Babel apresentou um caso de rejeição do público. As personagens Leila (Sílvia Pfeiffer) e Rafaela (Christiane Torloni) eram bonitas, ricas, bem-sucedidas e lésbicas, mas foram rejeitadas nas pesquisas de opinião e terminaram mortas na explosão do shopping que era o centro da trama. Ainda assim, acompanhando o clima sociocultural, observou-se uma persistência de autores na introdução de personagens homossexuais com vida não caricata ao longo dos anos.
O beijo entre as personagens gays de Amor à Vida não foi o primeiro da TV. Foram as atrizes Vida Alves, hoje de 85 anos, e Geórgia Gomide, falecida em 2011, aos 73 anos, as pioneirasque protagonizaram um beijo gay, em 1964, no teleteatro A calúnia, da TV Tupi. Gomide interpretava uma professora lésbica e Alves uma colega. A segunda expressão explícita de afetividade entre mulheres, na forma de carícias e beijo, de que se tem registro na TV, demorou 47 anos: foi em 2011, entre as atrizes Luciana Vendramini e Giselle Tigre, na telenovela Amor e Revolução, do SBT, e passou a ser considerado o primeiro beijo gay em telenovelas. Na cena do capítulo exibido em 12 de maio de 2011, a advogada Marcela e a jornalista Mariana se acariciam e trocam elogios, até que se aproximam e trocam um longo beijo.Considerada uma ousadia, a cena não aumentou a audiência da trama (marcou cinco pontos) que teve outras tentativas censuradas (um beijo entre dois rapazes ocorreria e foi cortado pela emissora).
Um beijo entre mulheres traz reações, mas numa sociedade patriarcal tem mais aceitação do que um beijo entre homens. Este, de fato, não tinha acontecido até o capítulo final de Amor à Vida, e a telenovela entra para a história e para as pesquisas de mídia como a que veiculou o primeiro beijo gay entre homens na TV. As reações estão na arena midiática e vão continuar. Vale lembrar que a novela que passou a substituir Amor à Vida, Em família, tem um novo casal de mulheres.
Estas transformações na própria forma de representar homossexuais nas telenovelas são, de fato, reflexos das transformações sociais. Assim como foi no passado com o divórcio ou com o controle da natalidade, reações negativas e até violentas terão sempre espaço e também são expressões de pressão sociocultural, na arena das disputas em sociedade.
Um modo de ver o caso: pelas dinâmicas socioculturais em curso
O fato de a mesma novela, Amor à Vida – que intensificou a representação da realidade dos direitos homossexuais (expressar afeto publicamente e criar filhos) –, ter tentado representar positivamente uma parcela do segmento religioso evangélico, traz outro elemento de relevância, pois é também retrato desta dinâmica. Aí estão representados aqueles grupos que fazem pressão sociocultural pelo lado da conservação, da preservação do patriarcalismo.
A crescente expressão pública dos evangélicos é elemento que não pode escapar às abordagens sobre religião nas mídias e a Rede Globo tem buscado afinação com esta demanda. O espaço dado aos evangélicos em suas programações nos últimos três anos, pelo menos (apresentação de artistas gospel em programas de destaque da emissora, exibição do Troféu Promessas e noticiário de eventos religiosos) diz muito deste processo. Isto se soma à concorrência da Rede Globo por audiência com a Rede Record de TV (pertencente à liderança evangélica forte do Bispo Edir Macedo), e à consultoria prestada à Globo pelo pastor Silas Malafaia (expressivo opositor de Macedo).
No entanto, na linha de compreensão adotada neste artigo, não se pode deixar de reconhecer que a crescente visibilidade evangélica no Brasil alcançou níveis bastante intensos em 2013, justamente por conta de polêmicas que envolveram a oposição de lideranças deste segmento, especialmente as do universo da política, ao que passou a ser por elas denominado “ditadura gay”, ou a imposição de um poder dos homossexuais na esfera pública. Ou seja, a explícita oposição a avanços sociais no campo dos direitos ou mesmo da maior expressão pública de homossexuais e feministas. O Caso Marco Feliciano (deputado tornado presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados) e a Marcha pela Família em Brasília, liderada pelo pastor Silas Malafaia, foram determinantes como disputas no campo sociocultural em 2013.
Portanto, ter evangélicos representados numa telenovela é também afirmar que a atmosfera social vem inflada por este segmento e, a necessidade, de alguma forma, de agradá-los – afinal, sempre houve insatisfação de grupos evangélicos sobre a forma pejorativa e irônica com a qual foram representados em algumas telenovelas (o caso clássico foi em Duas Caras [2007], de Aguinaldo Silva, que mostrou evangélicos na forma de fanáticos violentos).
Interessante o tom conciliatório do espaço dado em Amor à Vida aos opostos do campo sociocultural do Brasil 2013, homossexuais e evangélicos. Dois aspectos chamam a atenção. Um primeiro reside no fato de a telenovela ter enfatizado direitos homossexuais, inclusive o da afetividade não reprimida, explicitada pelo beijo entre homens no último capítulo, com destaque a um novo conceito de família e de relações amorosas. Ao mesmo tempo, os capítulos finais da telenovela ofereceram ao público uma enxurrada de casamentos, “recasamentos” (com bom registro de bênçãos religiosas) e formalização de união estável, com amplo número de bebês sendo gerados ou mesmo adotados nestas famílias tradicionalmente formalizadas. Soma-se a isto a “conversão” do personagem protagonista Felix, que de perverso e cruel tornou-se dócil e amoroso, a ponto de perdoar o pai e a ele se dedicar, quando debilitado. A última cena da novela não foi o “beijo gay”, mas uma expressão marcadamente evangélica de perdão mútuo. Uma forma de agradar os dois lados, conciliando pela via do “final feliz” deixando de apenas chocar com o “beijo gay”?
O pastor Silas Malafaia, em constante interação com a cúpula da emissora, mesmo antes da exibição do capítulo final, declarou: “A Globo tenta abrir um canal com os evangélicos por um lado e fecha por outro lado. A Rede Globo é a emissora campeã no país de promoção da causa gay (cf. Radar On-Line/Veja, 23 jan. 2014, disponível aqui). Fato é que o pastor Malafaia, conhecido pelo estilo enfático, “de falar as verdades”, até o momento não deu uma palavra pública posterior ao episódio. Já o deputado Marco Feliciano, promotor de polêmicas, declarou conciliatoriamente no Twitter (01/02) que a cena do beijo já era esperada e ainda: “Teria algo a dizer se o caso fosse exibido numa programação infantil, pois com estes me preocupo, mas pelo horário exibido só adultos viram.” Curioso que o deputado desconheça que crianças estão entre o público de telenovelas do horário nobre e que sites que acompanham a programação de TV já noticiavam há algum tempo que o personagem Felix fez sucesso entre as crianças.
O outro aspecto de Amor à Vida que imprime um tom conciliatório, em especial de agrado aos evangélicos, está na representação do grupo na trama. O pastor, de imagem serena, amorosa e inclusiva, em nada lembra as lideranças religiosas em evidência nas mídias em 2013, agressivas e detentoras de verdades absolutas. Buscou-se mostrar uma face mais humana dos evangélicos do que a revelada pelas lideranças midiáticas em destaque no noticiário e nos programas religiosos. Essa face existe, certamente, mas não é a dos personagens religiosos que mais se destacam nas mídias. Outro exemplo é o dos artistas gospel “globais” se apresentando numa igreja tão pequena e pobre (carente de doações para um telhado, segundo a narrativa de um dos capítulos). Isso também em nada se relaciona à realidade do mercado da música gospel, aos altos cachês e às “ofertas de amor” demandadas para apresentações, que muito provavelmente não aconteceriam naquele perfil de comunidade. Nesse caso, é ficção mesmo, mas busca conciliar, agradar com uma face positiva do grupo.
Tudo isto está no contexto de um tempo dinâmico e cheio de possibilidades: ano eleitoral, de disputas de espaço e de poder, e as mídias mediando todo este processo. Realmente, seguindo o pensamento de Martín-Barbero, há muito que refletir e com isso a necessidade, seja de que lado estivermos na disputa sociocultural (transformações ou manutenções), de abandonarmos a soberba de imaginarmos que sabemos o que as pessoas pensam e sentem.
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Magali do Nascimento Cunha é docente do Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo, editora do blog Mídia, Religião e Política