Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um convite à automedicação

O assunto principal do programa era herpes ou HSV, o vírus que se manifesta por meio de feridas, geralmente na boca e na região genital. Com a presença dos infectologistas Caio Rosenthal e Rosana Richtmann no estúdio, os apresentadores do matinal Bem Estar, da TV Globo, Fernando Rocha e Flávia Freire, abordaram o tema na quinta-feira (27/02), respondendo a questões enviadas pelos telespectadores e revelando dados interessantes a respeito da patologia, como o fato de que aproximadamente 90% da população mundial já teve contato com alguma forma dela.

Lá pelas tantas, um dos médicos resolveu citar um possível tratamento para a doença, que poderia ser feito via aplicação de creme ou ingestão de comprimido. Mencionou, inclusive, o nome do medicamento: Aciclovir. Ainda que consideremos a citação um pequeno deslize de um programa ao vivo, o remédio voltou a ter seu nome citado em alto e bom som outras várias vezes, tanto pelos infectologistas e apresentadores, quanto até por um convidado entrevistado, que testemunhou ter tido sucesso ao utilizar o medicamento em seu tratamento.

Até aí, nenhum problema, pois a menção, em si, não caracteriza exatamente um merchandising inapropriado. O antiviral citado é fabricado por diversos laboratórios diferentes – que, diga-se de passagem, devem ter comemorado, ainda que de maneira compartilhada, a propaganda espontânea. Mas, e a questão da indução à automedicação?

Os profissionais chegaram a pincelar algo sobre a importância de procurar um médico para formalizar a indicação do produto. Todavia, não há quem não goste de saber que remedinho funciona melhor para este ou aquele problema. Ali, havia, ainda, a chancela de profissionais que ganham tanto ou mais credibilidade por estarem na televisão que os próprios médicos que recebem os pacientes em seus consultórios de tempos em tempos. Na telinha, a responsabilidade multiplica.

Médicos não são estreantes

No mesmo dia, logo após o Bem Estar, o Encontro, de Fátima Bernardes, tornou a mostrar a “coincidência”. Fátima recebeu em seu sofá a atriz Mariana Cortines, a Kika, de Malhação, que sofreu um gravíssimo acidente de carro no fim de 2013 e quase perdeu a vida. Para contar sua história de superação, Mariana foi acompanhada de sua mãe, Maria Cecília, que, a certa altura, disparou que precisou tomar Rivotril para suportar as fortes emoções do período em que a filha se recuperava.

Apelar para o antidepressivo que ela nunca havia tomado antes, fora a única providência que realmente havia adiantado, relatou. Aí, sim, o deslize foi mais grave. E isso porque Rivotril é mesmo o nome comercial do remédio, cujo título genérico é Clonazepam. O laboratório responsável deve ter ficado bem feliz com a publicidade gratuita. Ou nem tão gratuita assim. Mas, Maria Cecília era somente uma convidada. Talvez desatenta, talvez desavisada. Aos médicos do Bem Estar, porém, que não são estreantes no programa, cabe prestar mais atenção na influência que têm e pode se tornar um belo convite à automedicação. Certamente, como profissionais, eles sabem, como ninguém, os malefícios que este procedimento pode trazer.

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Taís Brem é jornalista, Pelotas, RS