Um mês após o primeiro beijo entre homens ter ido ao ar no horário nobre da Globo, outro casal tabu começa a se formar na faixa das 21h.
Na novela “Em Família”, a fotógrafa Marina (Tainá Müller) se encanta pela dona de casa Clara (Giovanna Antonelli) e logo percebe que estava apaixonada. Será que vai ter beijo lésbico?
“O que eu tive com a Clara foi uma empatia imediata, um encontro de almas”, disse a personagem Marina.
Acontece que Clara é casada, tem filho e, embora pareça abalada também, resiste às investidas da nova amiga.
“Como você encara a história da Daniela Mercury? Não sei, mas tem que ter muita coragem para embarcar numa história de amor com outra mulher”, Clara fala para si mesma (e para o maior público da TV Globo).
A trama com Clara e Marina já obedece a um padrão, considerando-se as últimas novelas da Globo. Personagens gays têm presença praticamente certa em folhetins.
O problema, segundo especialistas ouvidos pela Folha, é que sempre aparecem de forma estereotipada, como foi o caso do personagem Crô (“Fina Estampa”, 2011).
“O gay é mostrado como afeminado, como Vera Verão, Félix, Crô. E na vida real, essa figura é minoritária. Gays são másculos na maioria”, diz Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia.
A repetição do padrão, no entanto, aponta para uma característica da teledramaturgia brasileira: a de atuar como termômetro forte dos temas que, mesmo considerados tabus, estão sendo discutidos pela sociedade e avaliados de maneira diferente.
Na década de 1970, por exemplo, o seriado “Malu Mulher” falou sobre a emancipação feminina no ambiente de trabalho e sobre a mulher como chefe de família. Nos anos 2010, as relações homoafetivas estão na pauta.
“A novela no Brasil é um espaço de crítica social importante. As que fazem mais sucesso são as que comentam a realidade”, diz Igor Sacramento, professor da Escola de Comunicação da UFRJ.
Todo carinho
Manoel Carlos, o autor, só diz que o romance entre Clara e Marina ainda não está estabelecido, mas que será contado “com todo o carinho”.
Nos últimos capítulos, as duas personagens foram vistas em cenas de intimidade, na piscina, tomando uma chuveirada juntas, deitadas de roupas íntimas, como um alimento para fantasias.
“Os homens heterossexuais têm um certo tesão em ver duas mulheres juntas. É algo recorrente em filmes pornográficos”, lembra a professora de Antropologia da USP Heloisa Buarque de Almeida.
A atriz Tainá Müller, que interpreta Marina, diz estar sentindo uma torcida forte do público pelo romance e que pretende se entregar.
Giovanna Antonelli, a Clara, diz que “o desafio será contar essa história de amor, independentemente da sexualidade da personagem”.
Para Luiz Mott, o beijo entre duas mulheres é mais “digerível” que entre homens.
“O lesbianismo ameaça menos a hegemonia do macho brasileiro, que ainda vê o homem gay como risco. As lésbicas fazem parte do imaginário erótico do macho.”
A complicação maior está na configuração familiar de Clara, casada com um banana malandro. “O público pode entender e apoiar o fato dela ter se apaixonado por outra pessoa, sem enfrentar diretamente a questão da sexualidade”, diz Sacramento.
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Aborto, drogas e raça são temas ainda evitados
Personagem homossexual é ingrediente quase certo hoje nas novelas. O que tem mais peso para combater o preconceito do que a materialização de um beijo gay.
“Um beijo gay não é o suficiente para quebrar o tabu. Mas se a Globo continua trazendo o tema, tende a crescer a aceitação social. o efeito da TV é acumulativo, vale o que é repetitivo, não o que é raro”, diz a professora de Antropologia da USP Heloisa Buarque de Almeida.
Se o amor entre pessoas do mesmo sexo já foi absorvido pelos folhetins, questões como aborto e drogas ainda são tabus inquebráveis. “Embora as pessoas recorram ao aborto, ninguém admite publicamente”, diz Almeida.
“Em Família” fez uma personagem, Neidinha, ser vítima de estupro coletivo. A personagem engravidou, não cogitou o aborto e teve o bebê.
Na TV, só acontece aborto espontâneo e “só vilão faz aborto”, diz Almeida.
Igor Sacramento, professor de Comunicação da UFRJ, aponta assuntos ligados à raça e à classe como outros tabus intocados.
Ele cita a raridade da escolha de atores negros como protagonistas. “As personagens negras são empregadas. Isso incomoda e reforça um tipo de imagem errada. Não há negros só em situações subalternas.”
O galã de Lázaro Ramos em “Insensato Coração” foi rejeitado, segundo esse especialista. “Não é galã por que é negro ou por que não é bonito?”
Já os núcleos de subúrbio são retratados como cômicos, diz. Como se pobres não tivessem problemas e conflitos psicológicos fossem prerrogativa dos mais ricos. (I.M.L.)
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Isabelle Moreira Lima, da Folha de S.Paulo