Não é preciso ser nenhum gênio para observar que há uma espécie de histeria coletiva sobre o Brasil em épocas de desfecho de novelas. Mas talvez seja preciso estar fora do Brasil para se conseguir ver o fenômeno com o distanciamento necessário para lamentá-lo. É provavelmente por isso que, nas conversas que mantive ao longo da semana com colegas jornalistas que estão no Brasil, o assunto foi “será que vai ter beijo gay no último episódio?” – enquanto nas conversas que tive com jornalistas também brasileiros, mas que vivem por aqui, o debate foi: “por que raios as novelas ainda ocupam esse papel na vida do brasileiro?”.
Há duas semanas, Avenida Brasil estreou na França, no canal France Ô. Estive no evento de lançamento organizado para a imprensa, em uma casa noturna de temática brasileira em Paris. Antes da projeção do primeiro capítulo, diante do público misto de brasileiros e franceses, um dos diretores da France Ô fez um curto discurso dizendo o quanto a emissora estava feliz de veicular este fenômeno de audiência no Brasil, “que ficou famoso por fazer até a presidente da república mudar os seus horários para assistir”.
O discurso aumentou a expectativa dos brasileiros que ainda não haviam assistido aAvenida Brasil – e mais ainda a dos gringos que, em grande parte, jamais haviam assistido a uma novela brasileira. As luzes são apagadas, param de circular as caipirinhas e as coxinhas de galinha, o “play” é acionado em três telões simultâneos. Com apenas cinco minutos de novela – após a primeiríssima cena, em que Adriana Esteves tem um ataque histérico “à la Maria do Bairro” diante de uma criança, e Toni Ramos entra na sala para acalmá-la com sua pinta de galã de fim de linha – já fica claro que não há nada ali. Ou, pelo menos, nada além do que uma novela mexicana filmada com uma câmera boa e bem editada. “Foi esse o fenômeno que fez a presidente do Brasil parar para assistir?”. Pois é, foi isso.
Programas de televisão ruins existem no mundo todo – Avenida Brasil vai ao ar diariamente na França, e a versão local do BBB volta e meia dá as caras. Há também algumas poucas novelas locais. A diferença é o alcance da televisão ruim: ela é feita para passar de tarde, longe do horário nobre e você muito raramente vai ouvir alguém comentar o que aconteceu no episódio de ontem. Muito menos se você frequentar uma universidade ou viver em um meio de gente que estudou minimamente. O alvo destes programas é claro: uma população de baixa renda e pouca instrução. E a repercussão no cotidiano é zero.
Capacidade rasa
Claro que o Brasil tem uma população de poucas renda e instrução proporcionalmente maior do que em outros países, e isso explicaria um maior sucesso das novelas. Mas o que espanta é como uma narrativa pobre e cheia de clichês não constrange qualquer pessoa com um mínimo de proximidade com narrativas um pouquinho mais complexas – o que deveria ser o caso não só das elites, mas de qualquer classe média que estudou literatura na escola. Não é só o conhecimento médio no Brasil é que é muito baixo, também o conhecimento das elites intelectuais. É claro que jornalistas não podem dar às costas a fenômenos sociais como as novelas. Mas que delirem enquanto espectadores, é preocupante.
O sucesso das novelas no Brasil se insere em um contexto maior: a televisão ocupa um papel de importância desproporcional na vida do brasileiro e de boa parte dos latino-americanos. Não há dúvida: coube à televisão compensar um passivo histórico de instrução e entretenimento em um continente pobre, que pouco viu livros ou teve opções. E coube às novelas – seja no México ou no Brasil – ocupar o espaço deixado pela falta de literatura, teatro, ópera ou cinema.
Mas está na hora de dar um passo à frente. A audiência das novelas e a importância que elas têm no cotidiano do brasileiro deveriam estar caindo como a mortalidade infantil e a pobreza. Mas a popularidade delas está aumentando – enquanto a boa Literatura foipraticamente banida das provas do Enem, por exemplo. Podem parecer coisas distantes, mas não são. Os baixíssimos índices de leitura no Brasil, na comparação a países não tão distantes como a Argentina, são conhecidos, nem é preciso repetir. O problema é: este cenário não dá sinais de estar em mutação para melhor. Ao contrário, o número de leitores no Brasil está em queda livre. E achar que acontece o mesmo ao redor do mundo por causa da internet é ilusão: o número de leitores na França é praticamente o mesmo desde 1980 – na verdade aumentou ligeiramente. O mercado do livro digital está explodindo. Mudou apenas a plataforma.
Não se quer uma população que renuncie às novelas para posar de intelectual, mas uma população que se sinta naturalmente constrangida ou entediada diante de uma criação ficcional tão primária. O fascínio pela ficção e por histórias bem contadas que invariavelmente nos fazem refletir sobre as nossas próprias vidas é universal. A pergunta que fica é: saciar esse desejo com Adriana Esteves ou com Maria do Bairro nos abre que portas imaginativas, criativas, intelectuais? O tipo de país que será construído por uma elite cultural cuja capacidade de formulação é tão complexa quanto Avenida Brasil é o mesmo que ela vem construindo nos últimos 500 anos.
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Gabriel Brust é jornalista baseado em Paris