Como se a própria TV Globo nada tivesse a ver com o engodo entre as montadoras de veículos e concessionárias, que transformaram a indústria automobilística brasileira na mais fraudulenta do planeta, o programa da TV Globo de entretenimento Mais você, de Ana Maria Braga, de segunda-feira (24/03), foi a exibição de um lodaçal de hipocrisia e enrolada de um setor favorecido por privilégios fiscais da ditadura e dos governos civis que se seguiram pós-64 e que ainda hoje continua a patinar num oceano da impunidade e favorecimentos.
Acostumado às firulas de todas as manhãs após o jornalístico Bom Dia, o telespectador deve ter-se surpreendido com a abordagem rara de um tema de alta tensão e seriedade. Não será surpresa se a apresentadora levar um puxão de orelhas da direção do programa por pressão de um anunciante de peso, como da Citroën.
São milhares de compradores de automóveis novos pagos que não funcionam por falta de peças ou com peças estragadas; consumidores jogados de um lado para outro como bola; compradores tratados como doentes mentais por vendedores de carros que mais parecem comandar uma azeitada quadrilha de bandidos profissionais; documentos expedidos com carimbos de órgãos oficiais sem qualquer valor jurídico na justiça.
Enfim, como a indústria abarrotou o Brasil de automóveis – há um carro para cada quatro pessoas, ou seja 50 milhões de automóveis nas ruas para uma população de 200 milhões – para satisfazer o sonho de consumo criado pela própria TV Globo e como o governo não obrigou as pessoas a aprender educação para dirigir, o resultado tem sido trágico: 21 mil mortes por ano. É como se o Brasil vivesse em permanente guerra interna.
A mídia e as quadrilhas
O carro nas mãos de pessoas despreparadas virou uma arma perigosa: as pessoas nem precisam mais de arma para matar – o carro resolve o problema, atropela-se, mata-se e se acelera. Quem cai na besteira de socorrer a vítima acaba mal: é punida pelos Detrans e depois pela própria vítima, que localiza a residência do motorista atropelador e depois promove a vingança.
Nesse mar de irresponsabilidade geral, sem ter mais onde colocar carros, a indústria automobilística abarrota as revendedoras em todo o país. Estas, por sua vez, vendem veículos a pessoas que mal pagam a primeira prestação. Nem cobram a segunda porque não têm mais onde guardar os carros, que ficam amontoados, parados, nas ruas de bairros e favelas em todo o país como lixo industrial.
Os automóveis nem são usados pelos donos que não podem pagar combustível nem são levados para os lixões pelos carros da coleta que não têm espaço para carregá-los.
Como a apresentadora Ana Maria Braga não é jornalista e sua incursão sobre a fraude das montadoras e concessionárias não foi bem orientada, o programa cometeu vários deslizes ou falhas, como não ter colocado no ar membros do judiciário para justificar a inoperância da justiça. Ou revelado a conivência da própria mídia com essas quadrilhas.
Mas aí você vai dizer que seria demais: ela seria demitida da Globo.
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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor