Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A escolha de Colbert

Em outubro de 2005, George W. Bush continuava em sua bolha triunfalista e exaltava as virtudes da invasão do Iraque. No dia 17 daquele outubro, um programa estreou às onze e meia da noite, num canal de comédia no cabo e, nas primeiras semanas, muita gente coçou a cabeça. O protagonista Stephen Colbert é de direita? E se não é, por que ele faz o papel de um conservador de maneira tão convincente?

Colbert acaba de ser escolhido para substituir David Letterman, o homem que mais influenciou a comédia na TV americana nos últimos 30 anos e gerou incontáveis imitadores. Não falo do Letterman que vocês assistem agora.

O formato do comediante-âncora usando o noticiário como material para sátira não era novo em 2005. O anfitrião do programa das onze no mesmo canal Comedy Central, Jon Stewart, já tinha a melhor equipe de redatores e falsos correspondentes desossando a América de George W.

No noticiário “sério”, o presidente Bush gozava de impunidade vender a invasão do Iraque como um grande sucesso. O fato de que 115 mil iraquianos tinham sido mortos na ocupação (a estimativa é conservadora) não era motivo de preocupação para um presidente cujo principal assessor político havia descrito jornalistas como parte da “comunidade que se baseia na realidade”.

Stephen Colbert havia passado alguns anos como um dos melhores falsos correspondentes do Daily Show de Jon Stewart. Mas saiu do ninho do seu mentor para criar o Colbert Report graças a um patrono maléfico. O magnata Rupert Murdoch tinha feito de sua Fox News uma potência jornalística a serviço da bolha de Bush, pondo fim à ideia de que o jornalismo mainstream americano tinha obrigação de demonstrar um mínimo de objetividade. Se o jornalismo com carimbo partidário se tornou aceitável, nós devemos a praga em boa parte a Murdoch.

O personagem do âncora direitista bufão e vaidoso criado por Colbert com perfeccionismo nos detalhes era uma combinação de vários anfitriões de programas da Fox News, mas foi especialmente inspirado em Bill O’Reilly, que Colbert chama de Papai Urso e recebeu várias vezes como convidado. Ainda que seu Colbert Report seja filho do estilo irônico de comédia que começou com David Letterman, nenhum satirista americano da geração atual na TV chegou ao refinamento de Colbert. Nem Letterman, que se inspirou em seu ídolo Johnny Carson até na distância prudente de controvérsia política.

Intelecto e talento

A ideia de um programa ancorado por um anfitrião na pele de um personagem conservador, racista e misógino foi considerada em 2005 suicídio de carreira. O melhor anfitrião de talk show de todos os tempos, Dick Cavett, não deu mais de três meses de vida ao Colbert Report. Em 2012, ele se penitenciou com um artigo na Vanity Fair e disse ontem na CNN que não há outro substituto com as qualificações do herdeiro da vaga de Letterman: “Colbert é um sábio da linhagem de Groucho Marx”, declarou Cavett, cujas entrevistas com Groucho são iguarias inesquecíveis do humor na televisão.

Se tivesse que escolher um momento-definição do humor de Stephen Colbert ficaria, não com um quadro de seu show, e sim com um evento em abril de 2006 que pode ser assistido no YouTube. Era o jantar anual da Associação dos Correspondentes da Casa Branca, que mistura o presidente à mídia e a convidados da política e do entretenimento. Em 2006, Colbert ainda confundia Washington o bastante para ser o convidado para um stand-up de meia hora. No papel do personagem Colbert, ele disparou o monólogo mais brutal sobre tragédias como a guerra no Iraque e o furacão Katrina que um comediante teve coragem de fazer a poucos metros de um presidente. O Colbert herdeiro de Letterman não vai causar desconforto semelhante a seus convidados, mas leva na bagagem o senso crítico que boa parte da cultura popular americana sugere ser incompatível com entretenimento.

Como se quisesse dar um presente de despedida ao personagem Colbert que o ator Colbert vai aposentar, o suíno Rush Limbaugh, estrela do firmamento da bolha ultraconservadora, disse que a CBS estava declarando “guerra ao coração da América” com a escolha do substituto de Letterman.

A decisão da rede CBS não foi determinada pela cultura, verve de satirista ou as conhecidas preferências políticas de Stephen Colbert. A CBS tem a audiência mais velha da combalida da TV americana. A idade média do espectador de Letterman é 58 anos. A do ruidoso público de Colbert é 42 e ele é uma presença forte na mídia social. Em resumo, cifrões.

Uma das manchetes sobre a escolha de Colbert dizia: “Cuidado, Washington. Colbert vai atrás de vocês.” Coitado do país que precisa de um ator comediante para denunciar guerra, racismo e injustiça social, enquanto faz biscate cantando Stephen Sondheim com a Filarmônica de Nova York e depõe numa comissão no Congresso sobre imigrantes sem documentos. Menos mal que um ator com intelecto e talento não teme o papel.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo