Domingo o “Esquenta!” inicia sua quarta temporada. É o programa mais longevo de todos que ajudei a criar na TV. “Programa Legal”, “Brasil Legal”, “Central da Periferia”, entre outros, tiveram vida curta. Não por problemas de audiência. Uma das características do grupo com o qual trabalho há mais de duas décadas na Globo é dar o recado e partir para a próxima. Não conseguimos ficar parados no mesmo lugar. Somos viciados em novas ideias. Talvez por isso nossos programas anteriores sempre envolveram muitas viagens. Com o “Esquenta!” é diferente.
Pela primeira vez não foi projeto nosso, apresentado para a TV. Foi encomenda: programa dominical de auditório, horário de almoço, no verão. (A música de abertura, de Arlindo Cruz e Gilberto Gil, cantava: “Regina de janeiro, fevereiro e março”.) Topamos o desafio. Estávamos acostumados com as variações climáticas das ruas brasileiras. O que fazer para o ar condicionado do Projac não esfriar nossa mensagem? Pensamos cada gravação como grande festa, que só funciona quando junta turmas heterogêneas (ou pelo menos: só gostamos desse tipo de festa). Muitas vezes perdemos o controle do estúdio: a plateia nos surpreende agindo como diretor maluco, fora do roteiro. Pensamos: deu certo, as pessoas estão aqui de verdade.
Na segunda temporada, ficamos no ar até o São João. Na terceira, começamos em novembro e só paramos em dezembro do ano seguinte. O “Esquenta!” é laboratório onde testamos outros mundos possíveis. Apresentamos: FHC conversando sobre drogas com Marcelo D2; José Pacheco, o português da Escola da Ponte; Afrika Bambaataa, o inventor do hip-hop; Gusttavo Lima com a Folia de Reis dos seus pais e o amigo Neymar; a OSB tocando a Sétima de Beethoven; as performances do Opavivará; Marina Silva explicando o que é desenvolvimento sustentável; um programa com a obra de Glauco Rodrigues no cenário e nos figurinos; a primeira reunião do funk ostentação paulistano com o DJ Marlboro; Kleber Mendonça Filho e Caetano Veloso falando sobre “O som ao redor”; Murilo Mendes lido por Regina Casé e Jorge de Lima por Fernanda Montenegro; Péricles, ex-Exaltasamba, descobrindo maravilhado o filósofo Mangaberira Unger. O que o mundo separa, o “Esquenta!” junta. Esses são apenas alguns momentos marcantes, que listo de memória, sem consultar os arquivos. Tudo no meio da chacrinha que quase se chamou “Pagode da Casé”.
Trabalho principal
Não pinço cenas intelectualmente corretas para dourar a pílula do “Esquenta!”. O programa é assim mesmo. Estamos ainda aprendendo a tirar partido de todas as possibilidades do auditório, que muitas vezes é encarado como a parte menos nobre da TV (frequentemente elogiada pela crítica apenas quando se parece com cinema ou teatro e finge não ser TV). Nesta temporada vamos até transmitir ao vivo, saindo de nossa zona de conforto de horas de edição radical. Dá para inovar muito no velho formato. Até porque nossa aventura semanal de convivência com elenco tão diverso, que tem visões de mundo e de Brasil distintas, também é pessoalmente transformadora. Cada um vai deixando de lado preconceitos, um ensinando ao outro (incluindo o público de casa) coisas que seriam inacessíveis caso ficássemos em nossos mundinhos. Lembro por exemplo da Nathalia Rodrigues, pessoa com deficiência visual e moradora do Complexo do Alemão, que apareceu na plateia do “Esquenta!” e hoje participa como comentarista nos programas, trabalhando também em nossa produção. Toda a equipe precisou se adaptar a outra percepção do cotidiano, com novos problemas e soluções, seguindo suas lições.
Somos então a família “Esquenta!”. Não é fácil ser uma família, como todos sabem. Principalmente uma família tão grande, bagunçada e tropicalista assim. Por isso o tema do programa de estreia da nova temporada é justamente família. Bom momento para debater esse assunto. Prestem atenção: foi aberta enquete no site da Câmara dos Deputados com a pergunta: “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” Já teve mais de 700 mil votos, o que demonstra como o tema é de grande interesse. O projeto do Estatuto não inova: essa definição já está na Constituição, inclusive com sua extensão para “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. São apenas esses os tipos de família que temos no Brasil? O “Esquenta!” oferece seu auditório para ajudar o país na busca pelas melhores respostas.
PS: Sempre em lugares “inteligentes” sou apresentado como antropólogo, autor de livros. Estranho: meu trabalho principal, de tantos anos, é ignorado. Então um pedido: está liberado, podem dizer que sou criador de TV muito popular. Nenhuma vergonha; é grande honra.
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Hermano Vianna é colunista do Globo