Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mortes no trânsito e o estatuto do discurso

Estudos demonstram que o Brasil ocupa a 4ª posição em número de mortes no trânsito, o que revela o perfil violento da sociedade brasileira ao volante. São 130 óbitos por dia (disponível aqui). Acesso em: 2 de abril de 2014]. Esses números alarmantes, no entanto, são tratados muitas vezes pelos meios de comunicação de modo espetacularizante, ou banal, como ocorreu no último dia 22, terça-feira, durante a edição do Jornal da Band, que classificou como “acidentes” as irresponsabilidades praticadas por motoristas que causaram inúmeras mortes durante o feriadão de Semana Santa.

Conforme a chamada do telejornal, “excesso de velocidade e ultrapassagem proibida foram as principais causas dos acidentes nas estradas durante o feriadão. Cento e trinta e seis pessoas morreram só nas estradas federais”. Diante do texto, fica a pergunta: o que leva um meio de comunicação a qualificar como acidentes comportamentos criminosos?

Para refletir sobre esta questão tomo como referência, primeiro, o texto de Michel Foucault (2009) denominado O que é um autor?, especificamente quando este teórico se refere ao fato de o nome do autor “manifestar a ocorrência de um certo conjunto de discursos” e, principalmente, o fato de que “o nome do autor outorga um certo estatuto ao discurso, à obra, conferindo-lhe autenticidade (o discurso é real, verdadeiro), distinção (o discurso tem valor, é especial, importante) […]”. Ou seja, considerando essa reflexão do filósofo francês, é possível afirmar, por exemplo, que um conglomerado de mídia como o Grupo Bandeirantes, através do seu principal telejornal – que, por sua vez, é ancorado por um dos mais respeitados profissionais de jornalismo do país (leia-se Ricardo Boechat) – não é um autor qualquer, mas um autor que confere autenticidade ao discurso.

Ambev investe 1,8 bilhão em publicidade

Mas, o assunto não se encerra na questão supracitada. Talvez esteja implícita nesse discurso da Band uma autocensura da emissora. Conforme Kucinski (1998, p. 51), “a autocensura é a supressão intencional ou parte dela pelo jornalista ou empresa jornalística, de forma a iludir o leitor ou privá-lo de dados relevantes […]”. Isto é: ao mesmo tempo em que o meio de comunicação tem como função veicular certas informações – como as ocorrências de trânsito nos centros urbanos –, “não pode” evidenciar “certas verdades” que suscitariam reflexões. Podemos citar como exemplos o fato de não ser interessante para as empresas de comunicação se referir, criticamente, acerca da comercialização e do uso indiscriminado de bebidas alcoólicas, a despeito da existência de uma legislação específica para o assunto; assim como a respeito dos incentivos fiscais destinados à indústria automotiva, responsáveis por uma parcela do aumento acelerado da frota de veículos no país. Isto porque os referidos setores [bebidas alcoólicas e indústria automotiva] – geram muito lucro, em forma de publicidade, aos veículos de comunicação, incluído neste cenário o Grupo Bandeirantes.

Conforme Ossa e Coba (2001, p. 9), “os recursos narrativos da televisão fazem com que o telespectador considere que está observando a realidade nas imagens que aparecem na tela, pese a que o que lhe é oferecido seja somente uma parcela da mesma […]”. Portanto, as verdades são sempre “relativizadas” nos meios de comunicação, principalmente quando estes possuem interesses (sejam eles econômicos, políticos e/ou outros). A recepção dessas mensagens deve, por isso, ser bastante cautelosa, crítica, reflexiva e, sobretudo, atuante no sentido de cobrar posturas mais condizentes com as demandas da sociedade.

Só para se ter uma ideia, em 2013 o setor de bebidas investiu 5,8 bilhões em publicidade. Deste montante, somente a Ambev (dona das marcas Skol, Brahma e Antarctica) contribuiu com 1,8 bilhão de reais, enquanto que o setor de veículos, juntamente com o de peças e de acessórios, entrou com uma fatia de 8,48 bilhões de reais. E o principal meio utilizado para essas publicidades foi a televisão (com destaque para a TV aberta).

Estatuto do discurso prevalece

Diante desses dados, fica fácil inferir os porquês do emprego da palavra “acidente” em lugar de “assassinato”, ou simplesmente “crime” para classificar essas atrocidades que diariamente acontecem no trânsito brasileiro, cometidas por pessoas que sabem dos riscos que estão impondo a outrem quando dirigem sob o efeito de bebidas alcoólicos, e/ou outras drogas; ou cometem infrações como, por exemplo, ultrapassagens em locais não permitidos.

Os interesses comerciais “falam mais alto” do que o reconhecimento de uma realidade dura, cruel, que pode ser revertida com medidas igualmente duras, e inclusive com o apoio dos meios de comunicação que poderiam ser cruciais nesse sentido. Esse emprego de uma palavra que suaviza (sem ironia), uma situação gritante, dá corpo a uma “verdade que se esqueceu de acontecer”, ou seja, a mentira, conforme o poeta Mário Quintana.

Mas a questão é muito complexa, temos que admitir. O próprio Poder Público é conivente com certas posturas que ameaçam a cidadania. Leis são criadas, sancionadas, mas as medidas efetivas para seu cumprimento não são adotadas, o que favorece a continuidade de práticas delituosas. Como exemplo temos a chamada “Lei Seca” (Lei 11.705/1988), que modificou o Código de Trânsito, com o objetivo de instituir medidas punitivas para motoristas embriagados; uma lei cuja aplicação pode ser duramente questionada. Basta vermos, nas nossas cidades, a falta de fiscalização neste sentido, que tem permitido o uso indiscriminado de bebidas alcoólicas por motoristas sem que a menor sanção seja aplicada; essas pessoas continuam circulando livremente [e matando] como vemos todos os dias país afora. A mídia, por sua vez, por conta de seus próprios interesses, não cobra medidas efetivas de fiscalização [e já sabemos alguns dos porquês].

Diante desses fatos, resta a conscientização e mobilização da sociedade, através de pressões que obriguem Poder Público e meios de comunicação aadotar outras posturas em prol da vida. Sem essa intervenção, o capital sempre vencerá. E os eufemismos assumirão o protagonismo para suavizar fatos, situações, comportamentos que deveriam ser tratados com a seriedade merecida, de forma a contribuir com a reflexão e, sobretudo, com a mudança de postura.

Quando não admitimos a existência de um problema, ou atribuímos este à fatalidade, pouco ou nada fazemos para solucioná-lo. Seguindo essa perspectiva, infelizmente continuaremos a lamentar os milhares de mortes causadas anualmente por imprudência, irresponsabilidade, desrespeito à vida; enquanto essa postura persistir, os montantes de dinheiro destinado à publicidade não deixarão de crescer; os donos da mídia continuarão a enriquecer; e a sociedade, por sua vez, não deixará de chorar as vidas que continuará a perder e, para dar continuidade a esse ciclo, o estatuto do discurso continuará a prevalecer.

Referências

FOUCAULT, M. Qué es un autor? Tradução Hugo Savino. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/138783889/O-QUE-E-UM-AUTOR-FOUCAULT-pdf.

OSSA, C.; COBA, L. “Censura, Autocenura y Regulación de la Información”. Revista Palabra Clave. Número 5, .Universidad de la Sabana: Colombia, dezembro de 2001. p. 9-18.

KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

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Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid e professora adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, Ilhéus, BA