Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A cobertura contraria fatos

As pessoas mais sensíveis que assistiram aos telejornais noturnos da GloboNews na sexta-feira (2/5) talvez tenham ido dormir com um travo n’alma, como dizem os portugueses. Os âncoras afirmaram, a cada edição, que as negociações para libertar os sete observadores internacionais feitos reféns na Ucrânia tinham pouca chance de dar certo, e que eles, em sua última aparição pública, “mostravam claros sinais de tortura”.

Em menos de 24 horas, a própria GloboNews se veria obrigada a noticiar fatos que contradiziam frontalmente a versão apresentada: na verdade, os reféns capturados há uma semana por separatistas pró-Rússia na cidade de Sloviansk foram libertados na própria tarde do dia seguinte, alegadamente sem imposição de condições para sua soltura. E os quatro alemães, um dinamarquês, um polonês e um tcheco, todos ligados à Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), asseguraram, em sua chegada a Berlim, que haviam sido tratados “com humanidade” por seus raptores, negando a ocorrência de violência física.

Código de ética?

Ante a constatação flagrante dos erros, a emissora seguiu os tais “Princípios editoriais” dos quais a Rede Globo se jacta e se desculpou com os telespectadores por informar incorretamente? Ou ao menos procurou explicar o que a levou a difundir, repetidas vezes, versões tão destoantes do que viria a ser a realidade dos fatos? De modo algum.

Ao invés disso, preferiu optar por uma estratégia do tipo “se os fatos contrariam nossas versões, pior para os fatos”, insistindo numa abordagem que, justamente por sua parcialidade gritante, praticamente impede o exercício do bom jornalismo. Ainda no sábado (3/5), no Jornal das Dez, Sandra Coutinho, correspondente em Nova York, pintou um quadro tétrico a ser deflagrado a partir dos desdobramentos da crise na Ucrânia.

Demonstrando estupefação ante uma pesquisa que demonstra que 60% dos norte-americanos apoiam uma postura não-intervencionista por parte de Obama, a correspondente, como se se dirigisse ao povo do país, perguntou, ralhando, o que esperam do futuro, afirmando que a manutenção de tal postura não-belicista talvez corresponda a privar o Ocidente da ação das forças promotoras da democracia. O Tea Party não faria melhor.

Complexidade e parcialidade

O conflito na Ucrânia é, evidentemente, uma questão complexa, com implicações geopolíticas, culturais e identitárias e um arco de repercussão que transcende seus limites geográficos, e insere-se num conflito imperialista global, o qual, em que pese o dito de que a história só se repete como farsa, às vezes sugere uma retomada espectral e extemporânea da Guerra Fria. Reconheçamos, a favor da emissora, que não é tarefa simples traduzir tal quadro a um público com formação cultural e educacional heterogênea e nos estreitos limites temporais da narrativa telejornalística.

No entanto tal dificuldade não justifica, de forma alguma, a adoção de narrativas falseadas ou marcadamente parciais do ponto de vista ideológico. Nem, no caso, uma tendenciosidade que deriva da importância desproporcional – quando não da atenção exclusiva – que o jornalismo global dá a aspectos que depõem contra a atuação russa e/ou miliciana na Ucrânia, enquanto omite ou subvaloriza ações das forças que se lhes opõem, apoiadas pela Europa ocidental e pelos EUA.

Episódios emblemáticos

O relativamente curto espaço deste artigo não é o local apropriado para esmiuçar a complexidade do conflito na Ucrânia e as muitas incompatibilidades inerentes à cobertura jornalística que os telejornais globais dele têm feito. Mas a citação de duas das mais graves distorções e/ou omissões na cobertura da crise ilustra de forma clara tal problemática.

A primeira é a forma recorrente como se omite que o ex-presidente Viktor Yanukovich foi vítima de um golpe de Estado, no episódio deflagrador do conflito. Em decorrência dessa omissão, dá-se a desconsideração para com a identidade e os interesses dos que perpetraram tal golpe, bem como para o porquê da reação russa.

A segunda – e certamente mais grave – ocorrência diz respeito à verdadeira ginástica narrativa que o telejornalismo da GloboNews fez (e continua fazendo) para não deixar seus telespectadores saberem que, na mais grave e cruel matança desde o início da crise – um incêndio que matou ao menos 38 pessoas na cidade de Odessa –, quem impediu as pessoas de saírem do prédio em chamas foram forças pró-unidade da Ucrânia. Reconheça-se que a surrada forma de atribuir tal infortúnio a um “conflito” entre tais forças e pró-russos não foi, no entanto, exclusividade das hostes globais, mas comportamento padrão de boa parte da imprensa.

Escassez de fontes

Tal constatação nos leva a outra questão de relevo: no interior dos graves problemas apresentados pela cobertura per se da questão da Ucrânia, verifica-se uma tendência a valer-se de poucas e ideologicamente afinadas fontes, em sua maioria do universo jornalístico anglo-americano. Trata-se de um problema que transcende os limites do telejornalismo nacional e tem marcado boa parte da cobertura sobre a Ucrânia em âmbito global, já tendo sido apontado pela professora Lenina Pomeranz em entrevista a Mauro Malin, neste Observatório.

O que claramente distingue a cobertura da GloboNews – como evidencia a mencionada fala da correspondente Sandra Coutinho – é que, desta vez, ela não se limita a construir uma narrativa fortemente influenciada pela visão predominante no establishment dos EUA; mas se alinha, agora, com uma visão imperial ainda mais conservadora, estilo Tea Party.

Visão anacrônica

Tudo somado, dois graves problemas decorrem das distorções inerentes à cobertura da crise na Ucrânia pela GloboNews: o primeiro tem a ver com a facilidade de acesso a uma multiplicidade de dados e informações disponíveis aos cidadãos nos tempos atuais, ainda mais em relação a um tema tão proeminente como a crise na Ucrânia. Fica difícil, para não dizer impossível, sustentar uma narrativa jornalística claramente tendenciosa e pontuada de omissões e distorções – como a oferecida pela Globo – para um cidadão que tenha interesse pelo tema, acesso à internet e domine rudimentos de pesquisa virtual.

O segundo problema da cobertura global sobre a crise na Ucrânia, diretamente ligado ao anterior, diz respeito a uma questão fundamental: como o jornalismo da Rede Globo concebe seu público? Graças ao trabalho do professor Laurindo Leal Filho, sabe-se que William Bonner, editor do principal veículo jornalístico da emissora, concebe o espectador médio do telejornal que apresenta como Homer Simpson, o apalermado, preguiçoso e ignorante patriarca de uma família de desenho animado.

O povo não é bobo

Ao constatarmos a desfaçatez com que a emissora tenta ludibriar seus telespectadores, mesmo em relação a um tema que, a princípio, não tem implicações diretas e imediatas na dinâmica política brasileira, a impressão que fica é que o telejornalismo global, como um todo, não só nos vê como um bando de Homers, mas preserva uma visão anacrônica e ingênua quanto à nossa capacidade de acessar fontes confiáveis de formação e confrontá-las às tão imaginativas quanto ideologicamente tendenciosas narrativas da emissora dos Marinho.

Atravessamos um momento histórico em que a relação de parcelas significativas da opinião pública com a Rede Globo mostra-se particularmente abrasiva, incluindo cada vez mais frequentes episódios de ataques verbais e físicos a profissionais da emissora no exercício de sua profissão – os quais devem ser rechaçados, por atentarem contra a integridade física dos profissionais e contra o livre exercício do jornalismo em uma democracia. É forçoso constatar, no entanto, que a cobertura extremamente tendenciosa que a emissora oferece da crise na Ucrânia ajuda a entender (embora jamais justifique) o sentimento por trás dos ataques. Pois mentiras flagrantes e parcialidade deliberada ofendem a inteligência do espectador. E ninguém gosta de ser enganado.

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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog