A televisão, conhecida nos primórdios como “idiot box”, que “me deixou burro, muito burro demais” (Titãs), vive o dilema do paladar infantil: o certo seria consumir comida saudável, mas quando se tem brigadeiro, hot-dog, sorvete e refrigerante, quem quer brócolis, espinafre, cenoura e lentilha?
Com planilhas de institutos de pesquisa em mãos, a televisão oferece o que o povo quer, não o que poderia querer ou seria saudável saber. Predomina a programação açucarada, colorida artificialmente, sem nenhum nutriente para o cérebro. A pressão da opinião pública pouco laica edita o produto final, uma teledramaturgia maniqueísta, a jujuba da linguagem binária: sim ou não, certo ou errado, o bem contra o mal, mocinha versus vilã, te amo ou te odeio, sou pura ou piriguete, justo ou desonesto, legítimo ou bastardo.
Mas o sistema a cabo da rádio BBC, que existia desde os anos 1920, para aqueles que não conseguiam sintonizá-la, estendeu o serviço para a TV depois da guerra. Nos EUA, a primeira companhia de TV a cabo nasceu na Pensilvânia. Um técnico em eletrônica de Mohanoy City, cidade num vale que não pegava TV, instalou uma antena no alto da montanha e distribuiu cabos para clientes.
A HBO, canal da Time Warner, cujo slogan “it’s not TV” é uma indireta, e a ACM, que passava filmes antigos, iniciaram o que o jornalista Brett Martin, no livro Homens Difíceis (Editora Aleph), chama de A Terceira Era do Ouro. Decidiram, por que não?, entrar no ramo de séries. Deram sorte. O DVD foi criado. A banda larga se expandiu. Quem perdia o episódio do domingo, podia revê-lo em gravadores digitais, como TiVo, ou pelo sistema on demand, computador, compartilhamento de arquivos, YouTube, Hulu, tablet ou celular, podia assistir a dois ou três episódios na sequência.
Método semelhante
Quem perde a primeira temporada, pode comprar, para saber do que se trata aquilo que todos comentam. Como já têm uma clientela fiel, que paga mensalmente o carnê, e não dependem de anunciantes, HBO e ACM ousam no cardápio, se livram da síndrome do paladar infantil e revolucionam a TV. Quem agora se arrisca a chamá-la de “caixa de idiotices”?
Começou com Família Soprano, série de 13 capítulos, não mais de 22, como na TV aberta, com atores desconhecidos, sobre um sociopata mafioso assassino, com síndrome de pânico, que atende numa boate de strip-tease. Foi oferecida a grandes redes (CBS, ABC e NBC) e recusada. Escrita e produzida por um roteirista de “segunda linha”, David Chase, ainda é a maior audiência na história da TV paga, que colou na audiência da TV aberta.
Depois, a própria HBO produziu The Wire, série escrita por um jornalista policial, David Simon, também com elenco desconhecido, que mostrou como renovar a linguagem: em cada uma das cinco temporadas, explorou o mesmo tema, a violência em Baltimore, de um ângulo diferente (o tráfico, a decadência financeira, a corrupção política, a decadência da educação e o papel da imprensa).
Mad Men, bolada por um roteirista de Soprano, Matthew Weiner, foi oferecida à HBO, mas produzida pela AMC, que tinha rios de dinheiro e queria entrar no negócio. Que em seguida produziu Breaking Bad, também recusada pela HBO e pela Sony, também comandada por um roteirista, Vince Gilligang, também com elenco desconhecido e técnicas e lentes de cinema.
São séries comandadas por um showrunner, personagem que poderia ser equiparado ao “diretor de núcleo” da Globo, com uma diferença fundamental: é o roteirista, não o diretor, quem manda e desmanda, escolhe das músicas aos atores. Fãs da nouvelle vague e do cinema italiano, aprenderam com Antonioni (Profissão: Repórter), Godard (Acossado) e Truffaut (Os Incompreendidos) a dubiedade do caráter do herói.
Se não somos perfeitos, por que nos identificarmos com alguém que aparenta ser? Chase explica: “O seu herói pode fazer um monte de coisas ruins, cometer todo tipo de erro, ser preguiçoso e parecer idiota, desde que seja o mais esperto de todos e faça bem o seu trabalho”.
A HBO foi além. Lançou Boardwalk Empire, Game of Thrones, Girls, bolada, escrita e dirigida por uma garota de 27 anos, Lena Dunhan, e True Detective, a sensação do ano.
O método de trabalho é o mesmo. Roteiristas ficam enfurnados durante meses bolando o que acontecerá. Oito horas por dia, ao redor de uma mesa, com um quadro grande negro dividido em 13. As emissoras não interferem no processo criativo. A HBO interferiu uma vez em Soprano e se arrependeu (no episódio College, em que Antony mata um delator).
Zona morta
Enquanto na TV aberta o beijo gay é debatido, na paga nos vemos torcendo para a dona de casa que planta maconha (Weeds), o professor de colegial que produz metanfetamina com um ex-aluno (Breaking Bad), o pai de família que mata primo, sobrinho e melhor amigo, para defender os negócios da mesma (Soprano), um serial killer que caça outros (Dexter), irmãos fazendo sexo ao lado do cadáver do próprio filho (Game of Thrones), garotas trocando dicas sobre sexo anal (Girls), homens fumando sem parar, oferecendo cigarros pros filhos, tratando mulheres como cidadãs inferiores (Mad Men), agente da CIA bipolar (Homeland) e surubinhas de vampiros (True Blood).
Se sangue e sexo jorram na TV paga, numa explícita “sexposition”, termo cunhado pelo crítico Myles McNutt, na aberta, com o pavor de perder audiência, acreditam que é melhor deixar para um dia quem sabe o que se pode exibir hoje.
Em 2012, nenhuma série das redes tradicionais de TV aberta foi indicada pra o Emmy de melhor drama. Diretores como Martin Scorsese e Steven Soderbergh se renderam: “Agora, o público de cinema nos EUA não parece mais tão interessado em algum tipo de ambiguidade ou de real complexidade de personagens e narrativas. Quem quer ver histórias assim está assistindo à televisão”.
Cride, fala pra mãe que nem toda TV é uma zona morta artística, despejando um esgoto de falsas promessas, anestesiando a massa conformista. E tabus são quebrados.
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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo