Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O futuro já começou

A televisão brasileira está passando por um grande processo de transformação. A hegemonia da TV aberta, inabalável durante anos, tem sido cada vez mais questionada. O próprio eletrodoméstico símbolo do país há mais de seis décadas tem tido sua influência interferida pelos avanços da internet e pelas mudanças nos hábitos de consumo de boa parte da população.

É notório que não podemos ser apocalípticos a ponto de creditar à internet a responsabilidade pelo declínio da televisão, se é que podemos falar em uma real derrocada. O jornal impresso, o rádio, o cinema, o teatro e a televisão continuam a fazer parte da vida dos brasileiros de forma significativa. As mídias passam por um processo de convergência que favorece o compartilhamento e o escoamento de materiais, inclusive com produtos exclusivos para o público cibernético. O telespectador padrão, no entanto, fiel às novelas e aos produtos variados da TV aberta, tem mudado a cada dia, a ponto de a audiência geral dos canais pagos já ter superado, de modo geral, a audiência da Rede Globo, líder de audiência no país e segunda maior emissora do mundo. Claro que essa contagem considera o universo dos canais transmitidos por cabo, seara na qual a Globo sempre foi líder.

A mudança de panorama televisivo se deve a fatores variados. Inicialmente, ao aumento do poder de consumo de boa parte da população brasileira. A ascensão da classe C é real e fez com que, nos últimos anos, o número de clientes das televisões por assinatura tenha tido um considerável aumento. Com preços menores e pacotes acessíveis, a TV paga atraiu um público novo e manteve seus clientes. Audiência maior, nesse caso, não significa mais qualidade. Destacam-se os investimentos em produtos nacionais (muitos deles com incentivos governamentais ou decorrentes da lei 12.485/2011, que exigiu a maior participação de atrações nacionais na programação dos canais a cabo), mas ainda é longo o caminho para uma televisão fechada mais democrática, interativa e realmente diferente. Nota-se a segmentação de público e mercado como a maior aposta desse setor, mas ainda se vê um excesso de filmes repetidos, programas de outros países simplesmente retransmitidos e quantidade incoerente de anúncios publicitários para canais comerciais que têm fontes de renda diferentes dos canais abertos. Por que tanta propaganda e repetição num canal pago e mantido, parcialmente, pelos assinantes?

Qualidade da programação em xeque

A programação jornalística, a cobertura de eventos esportivos e culturais, assim como os projetos dramatúrgicos e de entretenimento de qualidade mostram que a produção da TV por assinatura tem sido impulsionada. O boom dos seriados estrangeiros também tem atraído uma grande parcela de fãs do formato. A pouca interatividade e inovação da TV aberta e a grande variedade do cardápio dos canais pagos são fatores que se complementam. A internet caminha ao lado desses fenômenos. A NetFlix, serviço norte-americano que oferece produtos televisivos e cinematográficos pela internet tem crescido de forma esmagadora, a ponto de produzir algumas séries. As pessoas estão cada vez mais se adaptando ao binge-watching, o que transforma as séries de sucesso em um produto a ser consumido em doses incompatíveis com o ritmo tradicional da TV.

Já são muitos os fãs de seriados e da própria televisão que não assistam mais ao aparelho de forma clássica. Além de assistirem aos seus seriados e filmes na hora e da forma que bem entendem, esses novos consumidores de bens simbólicos se apropriam das ferramentas tecnológicas para assistirem seus programas de TV favoritos. Os portais das emissoras oferecem a íntegra dos jornais, novelas e demais produtos, de forma gratuita ou com a cobrança de taxas que cabem no bolso dos interessados. Todas essas ações paralelas favorecem a construção de um novo perfil de telespectador. Se a TV digital ainda não trouxe a sonhada interatividade plena, o público buscou sua própria maneira de assistir ao que bem entende. As instituições de pesquisa precisam se dedicar mais a análise dos consumidores que assistem TV pela internet. Em determinados casos, os programas têm mais sucesso na rede do que na televisão.

Toda essa transformação causada, em parte, pela internet, tem atingido, de modo intenso, as emissoras de televisão aberta. A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República publicou, neste ano, o resultado da Primeira Pesquisa Brasileira de Mídia. Segundo esse relatório, 97% da população assiste TV, ao passo que 47% dos brasileiros têm o hábito de acessar internet. A distância entre as mídias confirma que ainda vivemos em um país de grandes contrastes e de uma ainda significativa desigualdade social, refletida na qualidade da nossa educação, saúde, segurança e acesso aos bens de consumo. Nem todos os milhões de habitantes que têm acesso à TV tem serviço de saneamento básicoem suas residências, o que mostra o nível de penetração da TV na formação do povo brasileiro, afinal, quantas crianças e adolescentes passam o dia em casa “sendo criados” pela “babá eletrônica”? Enganam-se os que pensam que a TV não exerce mais a mesma influência ou que foi substituída pela internet. Os números mostram o contrário.

Os mesmos números afirmam que a audiência das televisões abertas tem caído vertiginosamente. As vantagens e desvantagens das pesquisas por amostragem são conhecidas por muitos. Os índices do Ibope são questionados, mas ainda são os únicos disponíveis para analisar o cenário atual. Por esses cálculos, a diminuição da audiência da Rede Globo é sintomática de uma crise. As pessoas não estão deixando de ver TV, mas estão deixando de ver as mesmas coisas. A trinca de dramaturgia de sucesso do universo “global” tem enfrentado os maiores problemas da história. A imprensa se esforça em culpar o horário de verão, o horário eleitoral, as férias, o trânsito, mas o que está mais do que evidente é que a qualidade da programação está sendo posta em xeque e os telespectadores estão simplesmente fugindo que não gostam. A televisão é, cada vez mais, um meio em transformação.

Barracos familiares e infidelidades

A apatia das concorrentes da Globo em criar uma programação alternativa e de excelência na TV aberta contribui para o favoritismo “global”. É óbvio que a emissora carioca é líder em virtude do seu inigualável padrão de qualidade. Só que esse mesmo padrão que já parou o país em épocas emblemáticas está sendo revisto e prejudicado. Enquanto a Bandeirantes, a Cultura e a Rede TV! se destacam com alguns produtos pontuais na luta pelo quarto lugar de audiência (lembramos sempre que essas colocações se referem basicamente a São Paulo, ponto norteador do mercado publicitário), a Record e o SBT se engalfinham para assegurar a vice-liderança. A Globo já perde em alguns horários e estados. O novo Vídeo Show não emplacou e as tardes são um problema para a emissora, que se vê ameaçada pelas reprises do SBT e pelo jornalismo da Record.

A Record, nesse sentido, parece ter optado pelo jornalismo como carro-chefe de uma grade desnorteada. Os horários não são tão fixos e deixam de criar aquilo que Boni definiu tão bem na Globo: a fidelidade de público. O núcleo de dramaturgia da Record, apesar de ter ótimos profissionais e um grande nível de qualidade, agoniza pela má-administração do canal. As produções bíblicas não empolgam mais como antes e a novela Pecado Mortal, talvez a melhor exibida atualmente, sofre com a péssima divulgação e as mudanças de horário. Mais uma grande história relegada aos cinco pontos de audiência. Enquanto isso seus diretores investem em jornalismo (por vezes, sensacionalista), programas de forte apelo popular e pouca inovação, refletida nas cópias dos produtos comprados da TV estrangeira.

A Band está cada vez mais desgovernada. O jornalismo e o esporte estão no topo dos investimentos, mas mesmo assim, exceto pelo barulho causado pelo CQC e pelo Pânico, pouco se fala da Band. Pouco se vê a Band. Entre outras questões incoerentes, fica difícil entender porque o programa Jogo Aberto, tão parecido com Os donos da bola, estão em sequência na grade. Isso sem falar nos horários loteados. Como crescer no horário nobre com uma faixa vendida à Igreja exatamente no horário que a maioria das pessoas está diante da TV?

E para seguir apenas no terreno das emissoras comerciais com melhor colocação em audiência, o que dizer da Rede TV!? Uma concessão pública praticamente vendida para as empresas de infocomerciais e para as Igrejas. Além de vender horários, falar de celebridades e subcelebridades, desnortear a grade com produtos desconexos e causar polêmicas com atrações de qualidade duvidosa, para quem tem servido a Rede TV!? A batalha eterna com os ex-funcionários da Manchete só não é maior que a frustração de quem acompanhou o início do canal, que já contou com profissionais como Marília Gabriela, Juca Kfouri, entre tantos outros. Suas poucas boas atrações e seu jornalismo de qualidade se esvaziam diante de uma programação mal administrada e que patina entre o traço e os dois ou três pontos. Até hoje fica difícil entender o que transformou João Kléber, animador e humorista que já colecionou sucessos, em um apresentador de barracos familiares e infidelidades.

Competência e know-how

A Globo vive também o pior dos momentos. Não há lugar para a programação infantil, esquecida nas manhãs de sábado. Fátima Bernardes já vai completar dois anos de Encontro numa programação matutina que se contenta com a pouca repercussão e a audiência que tem. As tardes vivem um problema sem fim. Com a rejeição ao novo Vídeo Show, a novela e os filmes reprisados se embaralharam e afastaram o público. Por que não mexer nessa estrutura que já se mostra tão desgastada?

Com as noites, a situação “global” não muda. A novelinha Malhação, que já teve dias de glória, a ponto de chegar aos 40 pontos, naufraga na casa dos 10 pontos. 20 pontos, por sinal, já é sinal de revolução. Para uma emissora que já atingiu números excelentes no horário, é de se preocupar a baixa repercussão das novelas. Os horários das 18h e das 19h nunca mais emplacaram um sucesso. As novelas das seis dificilmente chegam aos 20 pontos e as das 19h chegaram ao ponto mínimo com Além do Horizonte, a trama de suspense que, embora tenha sido bem recebida, por fim, pela crítica especializada, afastou o público do horário. Meu Pedacinho de Chão, às 18h, tem uma qualidade absurda, em um mais um grande trabalho de Luiz Fernando Carvalho e Benedito Ruy Barbosa. Qualidade inquestionável, audiência pior da história. Como explicar? Geração Brasil, por sua vez, é a aposta do horário das sete, que não vê marcas de 30 pontos desde Cheias de Charme, trama da mesma dupla (Filipe Miguez e Izabel de Oliveira) que assina a nova novela.

Às 21h, a crise é ainda maior. Em Família não agradou a maioria do público e chegou à amarga marca dos 20 pontos, um índice de novela das seis. Manoel Carlos até que construiu uma boa novela, mas que não empolga pelas incoerências e pela falta de ritmo. Ele ainda é um dos que melhor escreve, do ponto de vista da dramaturgia, mas junto com sua equipe, não se atualizou diante das novas exigências do público. Avenida Brasil (2012) é o último sucesso do horário e que atingiu, por meses, a marca de 40 pontos. Um fenômeno na história das telenovelas. De lá pra cá, nenhuma novela repercutiu tanto. Amor à Vida se perdeu em meio a um roteiro que tinha tudo para dar certo. Aguinaldo Silva chega, no segundo semestre, com a meta de “salvar” o horário. Competência e know-how para isso não lhe faltam. Caso contrário, teremos que esperar o segundo semestre de 2015 para assistir a um novo trabalho de João Emanuel Carneiro, o melhor dos novos roteiristas em ascensão na Globo.

A TV é feita de pessoas

Muita coisa contribui para o afastamento do público, inclusive, o desgaste das fórmulas e o horário das atrações. O Jornal Nacional, embora líder, não alcança mais a popularidade de antes. O Fantástico não consegue recuperar o público perdido. O novo formato é mais uma tentativa de trazer de volta um público que migrou para novas opções. Com a novela das 21h ficando no ar mais de uma hora por dia, toda a grade de shows é empurrada para mais tarde. Jô Soares nunca foi ao ar tão tarde e sofre também com a concorrência do SBT, que ri à toa com o The Noite de Danilo Gentili, com as novelas infantis e com o sucesso eterno do rei dos domingos, Sílvio Santos.

Com um horário muito complicado, a Globo desperdiça produtos de qualidade como Doce de Mãe, Tá no Ar: a TV na TV, O Caçador e Profissão Repórter. Não é claro que se esses programas fossem ao ar às 22h teriam um retorno de público esmagadoramente maior? Que programa “global” mexeu recentemente com a população brasileira, exceto a versão nacional da The Voice? Onde está a nossa criatividade, já comprovada, mas sumida, para criar produtos ao invés de copiá-los do exterior?

A TV aberta, de forma generalizada, também vê o público de filmes e de eventos esportivos diminuir cada vez mais. Enquanto há o excesso de filmes repetidos, programas de auditório repetitivos e jogos nem tão empolgantes, pouco se vê de música. Onde está a música de qualidade na TV aberta comercial? Por que o Som Brasil passa de madrugada e o Big Brother Brasil às 22h? Sabemos o porquê, só é difícil aceitar.

Se o futuro da TV é esse que se desenha, não vai demorar muitos anos para o telespectador tomar uma atitude decisiva. A revolução é lenta e gradual, mas a mudança já dá sinais de start. Não será novidade se, em breve, o controle remoto for cada vez mais substituído pelo mouse. Se quem pensa a TV no Brasil não resolver parar pra pensar em que vê televisão, vai perceber tardiamente que, mais do que números de audiência ou lucro comercial, a TV é feita mesmo de pessoas. As que produzem e as que assistem. Essas últimas, de passivas, não têm nada. O futuro, de fato, já começou!

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Tcharly Magalhães Briglia é estudante de Rádio e TV e professor de Português e de Inglês