Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sensível, alegre e charmosa

Quer esquecer a pieguice de Em Família, a presunção tecnoglobalizóide de Geração Brasil e o rosário de tragédias dos telejornais? Seus problemas acabaram: impossível não se deixar arrebatar pelo colorido circense e a caipirice charmosa de Meu pedacinho de chão, novela das seis da Rede Globo, escrita por Benedito Ruy Barbosa em 1971, mas reciclada e totalmente moldada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, que fez trabalhos como Pedra do Reino e Suburbia, nos quais a estética é marca registrada.

Embora as cenas sejam curtas e a edição use o fast-motion para acelerar os movimentos, o enredo torna o ritmo rural: a semana passada, por exemplo, foi quase toda dedicada à preparação dos habitantes do vilarejo de Santa Fé para uma missa que finalmente seria realizada no lugar.

O bom-humor também dá o tom da novela: Pedro Falcão (Rodrigo Lombardi) aconselha Padre Santo (Emiliano Queiroz) a não fazer sermões longos se não quiser ver sua igreja vazia, enquanto o moleque Serelepe (Tomás Sampaio) alega que não pode ser coroinha por ter sido um capeta até então.

Meu pedacinho de chão tem servido ainda para dar oportunidade a símbolos sexuais e galãs de provar que também podem ser grandes atores: Juliana Paes está excelente como Catarina e Rodrigo Lombardi vem mostrando a que veio como Pedro Falcão, ambos com sotaque quase perfeito. Também merecem destaque as performances de Irandhir Santos como Zelão, Osmar Prado como coronel Epaminondas e Antonio Fagundes como Giácomo, além de Flávio Bauraqui como Rodapé. (Aliás, os nomes dos personagens, com sabor luso-afro-tupi, são outro encanto da novela: Rodapé, Marimbondo, Giramundo, Pituquinha.)

Preço da experimentação

Tanto quanto a fotografia, o cenário, os figurinos sincréticos (Serelepe caracterizado de Pequeno Príncipe; o capataz Zelão, meio caubói meio mosqueteiro do rei; Catarina de Maria Antonieta), a direção de arte e a produção musical de Tim Rescala também são impecáveis. E o clipe do clássico sertanejo de Pedro de Sá Pereira e Ary Machado, “Chuá, Chuá” (ver aqui), reunindo quase todos os personagens da novela, foi uma das homenagens mais ternas e comoventes à cultura caipira, que abrange, ao contrário da elite zona sul carioca de Malhação, uma expressiva parcela da população brasileira (interior de SP, de MG, ES, PR, MT, GO, MS etc.). Sugiro que o próximo videoclipe seja da música “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira.

O único senão diz respeito à personagem Gina (Paula Barbosa): apresentando hábitos masculinos, é maldosamente rotulada pela população de Vila de Santa Fé de “mulher-homem” e pressionada por todos, inclusive pela virtuosa professorinha Juliana (Bruna Linzmeyer) a arranjar namorado. Juliana, que deveria ensinar respeito à diversidade e tolerância às diferenças, leva Gina, a contragosto, para comprar vestidos. Isso reforça estereótipos e deve desagradar ao público LGBT, mas a coisa toda é colocada de modo tão gracioso que à novela é permitido se tornar politicamente incorreta.

Tomara que a Globo não se sinta forçada pelos índices de audiência, que não são altos, a redirecionar os rumos da produção, e prefira pagar o preço da experimentação: depois de Cordel Encantado, Lado a Lado e Joia Rara, a faixa das seis continua a premiar o público com novelas de qualidade, que visitam a alma brasileira com criatividade e bom gosto.

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Silvia Chiabai é jornalista