João Emanuel Carneiro (Rio de Janeiro, 1970) fez o caminho inverso dos autores tradicionais, que começam com contos para acabar construindo romances: saiu da telona para a telinha. Aos 20 anos escrevia roteiros para o cinema e fez mais de uma dezena de longas e curtas. Depois de colaborar com a roteirização do Central do Brasil, que foi indicado ao Oscar em 1999, entrou na Rede Globo. Seu início na maior rede de televisão brasileira foi fazendo programas especiais, mas seus dedos inquietos resolveram escrever uma sinopse de uma novela das sete. Autodidata, aos 16 anos já fazia histórias em quadrinhos, o que o levou a entrar no time do cartunista Ziraldo. Algo que, garante, não passou de um final feliz para um adolescente que teve a audácia de mostrar seus desenhos ao criador de Menino Maluquinho ”um dia qualquer, depois de sair do colégio”. Por telefone, falou ao EL PAÍS sobre o sucesso da novela de sua autoria Avenida Brasil, que é o título mais licenciado da história da emissora e que acaba de cruzar o oceano uma vez mais e chegou até a Espanha, depois de passar por 125 países e ter versões em 19 línguas.
Como funciona o seu processo de criação de uma novela?
João Emanuel Carneiro – Eu acredito que uma novela é uma obra aberta, mas no meu caso, meio fechada, porque eu sei o que vou fazer desde o início. É uma via de mão única. Claro que me alimento de muitas coisas que os atores fazem, é uma construção conjunta, mas da parte deles espero obediência. Em uma guerra, se a tropa resolver discutir no campo de batalha, não dá certo.
A fórmula de uma novela é um pouco como na gastronomia, se acrescentamos um ingrediente, muda totalmente a receita… Como controlar a entrada de um personagem que rouba a cena? Ele é capaz de mudar o rumo da história?
J.E.C. – Das histórias paralelas, sim. Em uma das novelas que fiz, Cobras e Lagartos, o personagem Foguinho [Lázaro Ramos] fez o maior sucesso. E também era uma novela das sete, fazia menos planejada, ao sabor das ondas. E ele foi tomando conta da trama toda, aí eu fui aumentando aquela história. Me permito muito mudar as histórias paralelas, diferente do que aconteceu em Avenida Brasil, que foi muito bem planejada.
Nem mesmo o que o público quer ou pensa te influencia?
J.E.C. – Não. Eu acho que é justamente um grande deslize. O problema de muitas novelas é tentar fazer uma obra encomendada para agradar alguém, baseada em pesquisas, em imaginar como seria esse outro [espectador].
Então de qual fonte você bebe?
J.E.C. – De muita leitura, muitos filmes e, claro, ter vivido alguma coisa [risos]. Um autor tem que ter uma antena, perceber o que está passando à sua volta. Eu acho que para Avenida Brasil eu tirei muito das conversas com as minhas empregadas contando a vida delas na cozinha de como era no subúrbio, e fui filtrando aquele universo. Também recorto jornal, tenho muito personagem tirado de notícias. Mas eu acho que todo escritor tem que ser mesmo um conversador, que se interessa pelo que o outro tem a dizer.
E o que as novelas brasileiras têm de especial? Por que costumam repetir a mesma repercussão nacional no exterior?
J.E.C. – O brasileiro e o latino, de modo geral, é muito fixado na ideia de família. Nas minhas novelas sempre tem a família. A desfeita, a de eleição, a com filho adotado, a que quer um ajuste de contas… O tema da família é universal, dá muito pano para manga. Como sou filho único e neto único, sempre fui fascinado por famílias grandes. A dificuldade é fazer uma história que seja vista por jovens e adultos, que seja ecumênica. A novela no Brasil tem essa particularidade, que é vista por todas as classes sociais. Já na América Latina, é vista pelos mais pobres, até mesmo no México, onde as telenovelas estão direcionadas para este público. E lá competimos com a novela mexicana em horário nobre e tivemos uma ótima audiência. A gente sempre foi tão colonizado que esse é o nosso colonialismo, ainda que eu não me veja na figura de um colonizador.
E por que as suas novelas, em especial, têm muito sucesso lá fora?
J.E.C. – Uma boa história dialoga com outras culturas. Minhas novelas têm a característica de ter poucos personagens, centrados em uma trama muito definida. Quando tem vários núcleos fica tudo muito moído, até mesmo a sinopse de uma novela com muitas tramas é difícil de contar ou vender. O grande desafio é fazer uma história com fôlego e com poucos personagens. A casa do Tufão [personagem de Murilo Benício em Avenida Brasil] e seus arredores ocupava 80% do capítulo. Mas não fazemos novela pensando lá fora, tem que dar certo aqui.
Fazer novela é muito diferente de fazer cinema?
J.E.C. – Sim, eu nem sei como pulei de um ao outro, na verdade, porque são totalmente diferentes. Umanovela são três longas por semana. São habilidades diferentes. O cinema tem mais liberdade, você não invade a casa das pessoas. Eu procuro fazer coisas que eu gostaria de assistir. Eu gosto de assistir dramas, mas algo que não tem humor me cansa. Uma obra longa como uma novela precisa ser dramática, ter humor e [despertar] libido. É a libido que faz você ver tantos capítulos.
Alguns defendem que novela é um gênero literário. Você concorda?
J.E.C. – É um gênero de literatura. Se pensarmos nos folhetins do século XIX, eram publicados nos jornais. Até mesmo Dostoiévski saiu na tira inferior de um jornal. Na Europa se sabia que uma tira com uma história contínua aumentava as vendas. Se for pensar, é o mesmo que se faz na televisão. Estou longe de ser um poeta, não estou me comparando. Mas a base da literatura europeia foi feita dessa forma.
E as temáticas das novelas? A emissora influencia nos temas que serão tratados?
J.E.C. – Não é obrigatório, mas tem um departamento na Globo que sugere que algumas coisas sejam ditas em determinados capítulos para educar a população. Eu já me engajei em várias. Tento não fazer isso sempre, para não carregar na linha social. Afinal, novela é entretenimento, mas também tem espaço para educar de uma forma não tão didática e sistemática. Se pensarmos bem, são 40 milhões de pessoas assistindo. É necessário que seja feito um demonstrativo de atitudes corretas, do politicamente correto. Se eu invento uma história onde cabe o crack, eu vou fazer. Mas nunca penso em um personagem só para abordar um tema polêmico. A Globo tem o mérito de nunca se meter. Eu proponho o que eu quero.
Como foi o beijo gay da novela Amor à vida?
J.E.C. – Sim, eu achei muito louvável o beijo de Amor à vida. Eu acho que essa novela cumpriu a função de provocar, de educar a ver algo diferente, a aceitar o diferente, a se familiarizar.
Ainda existem temas tabus que não são abordados nas novelas da Globo?
J.E.C. – Além das freiras lésbicas assassinas, acho que não… [risos]. Eu tenho a impressão que a sociedade ainda é muito tradicional. O homossexualismo ainda é um tabu. As histórias têm que acompanhar mais a sociedade. Na minha opinião, um dos assuntos mais importantes ainda não foi abordado: o controle de natalidade. Deve existir um diálogo com as adolescentes de subúrbios, um tipo de pessoa que não deveria ter filhos jovem. Até o Agnaldo Silva [outro autor de novelas da Globo] tentou fazer uma campanha sobre isso. Mas temos aí a igreja católica… É uma questão política, mas muito importante para o Brasil. É um país que tem um imenso sucesso na luta contra a Aids, mas tem um problema seríssimo por não falar sobre o controle de natalidade, que é uma questão muito mais visceral que a do beijo gay. É o mesmo que abordar um tema difícil como o aborto, mas tem que ser feito de alguma maneira, ainda que sutilmente.
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Beatriz Borges, do El País