Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Copa na TV aberta

Cada um vive a aventura que pode. Como naquelas velhas reportagens do jornalismo literário, resolvi mergulhar numa experiência radical e emergir dela como um sobrevivente orgulhoso. Só que a tarefa não era ir para a guerra ou viver seis meses como mendigo, e sim passar os primeiros dias de Copa vendo TV aberta.

O resultado não foi muito heroico. É verdade que enfrentei o Datena. Que Milton Neves alterna sua vocação para o Ministério Público com elogios a um supermercado. Que Renata Fan dá seus “recados” citando uma operadora de celular, e a música de uma querida ex-banda de protesto virou trilha de cerveja de milho.

Mas já estou grandinho para me chocar com esse comércio contínuo de mercadorias e convicções. A reação é bem mais familiar: um reconhecimento tedioso das emoções editorializadas, do humor de amigão da firma.

Muito se falou da imagem do Brasil passada aos estrangeiros durante a Copa. Para quem é daqui, o país desta semana sai da tela como vem saindo há anos. Matérias sobre nosso jeito hospitaleiro e folclórico. Considerações sobre uma terra de contrastes. Crônicas poéticas ao final dos jogos (uma das que vi falava da relação entre a chuva e a alma). Narrativas de superação dos guerreiros (a sobre Thiago Silva começa na infância pobre, passa por uma tuberculose e termina com o protagonista –música ao fundo– se tornando o “ca-pi-tão da se-le-ção brasileira”).

Registre-se que há exceções de boa reportagem, informação útil dada por bons comentaristas, dados de bastidor trazidos por ex-atletas articulados. O problema não está no varejo, e sim no atacado. Algo igualmente familiar: ninguém espera que Galvão Bueno deixe de torcer, que direitos de transmissão comprados por centenas de milhões não se transformem numa abordagem em geral oficialista –e, por isso, sem ousadia.

Resta a mesmice

A TV aberta é uma espécie de negativo das redes sociais. Em vez da falta de filtro, o filtro em excesso. Em vez da particularidade magnificada, a generalização sem diferenças. Se no Twitter o início da Copa foram protestos, greves e transtornos causados pela parceria Don Corleone-Didi Mocó que a organiza –o que é verdade–, em LCD o torneio vem sendo uma festa contínua cujo motor é a paixão de multidões –verdade também.

Claro que há nuances aí. Há esforço das emissoras em sair da armadilha dos extremos. “O que a Globo não mostra” é o que a Globo mostra, sim, porém menos do que deveria –em momentos secundários da cobertura, em menções demasiadamente rápidas. O mantra dos locutores é algo como “todos têm direito de se manifestar, mas tudo tem hora”. A oração adversativa é a senha para que a euforia continue, agora sem pudor.

Por outro lado, e mesmo que a mistura entre jornalismo e entretenimento (ou departamento comercial) seja fato há muitas Copas, há uma novidade simbólica e incômoda em 2014. A mesma Globo que não faz merchandising explícito, ao menos na boca de seus locutores, desistiu de parecer neutra no principal produto de seu pacote. Quem opina sobre o campeonato da Fifa nos jogos do Brasil é Ronaldo Nazário, que presta serviços à Fifa.

Na cerimônia de abertura, vestindo o terno azul que representa a imagem e os valores da casa, o fenômeno se disse feliz porque –tantas obras inacabadas e “adequações de orçamento” depois– as coisas estariam “prontas”. É como se a caricatura sucumbisse a si mesma, o vilão de desenho animado dando munição aos mocinhos –este texto incluído– que usam o contraste para declamar o próprio espírito crítico.

Comenta-se que o modelo de megaevento esportivo será repensado depois da experiência conturbada no Brasil. Na cobertura dos jogos isso já foi feito, de certo modo, mas apenas na TV a cabo. Ali temos Milton Leite, PVC, Juca Kfouri, Xico Sá e, principalmente, Eduardo Bueno explicando a nobreza do centromédio gremista de contenção.

Com suas vantagens –tempo maior e variedade de programas e formatos– e contingências editoriais –o SporTV é da Globo, a ESPN é uma corporação internacional poderosa–, na média é uma abordagem menos paternalista e engessada, mais transparente e criativa.

Para a grande audiência, ao contrário, resta a mesmice. É o legado de um modo de comunicar, e de enxergar o distinto público, que não acompanhou as mudanças no país e no mundo.

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Michel Laub, escritor e jornalista, é colunista da Folha de S.Paulo