Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dois beijos e duas medidas

O primeiro beijo entre Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Müller), de “Em Família”, foi a cena de novela mais comentada nesta semana na TV brasileira. Depois de meses vivendo um romance sem beijos e quase nenhum afeto, elas deram um selinho rápido no momento em que uma personagem pediu a outra em casamento.

Este beijo desidratado foi saudado por muitos como “o primeiro beijo lésbico” em novela da Globo. Pelo barulho criado, a cena certamente ajudou na divulgação da novela e pode ter contribuído para convencer a parte mais otimista do público de que não há mais tabus na televisão.

Na mesma noite, porém, a Globo exibiu um outro primeiro beijo, que merecia repercussão, mas passou praticamente sem ser notado. Deu-se em “Meu Pedacinho de Chão”, novela das 18h, cuja audiência é uma das mais baixas já registradas neste horário.

A cena foi protagonizada pela professora Juliana (Bruna Linzmeyer) e pelo capataz Zelão (Irandhir Santos) e significou o fim da barreira cultural e social que havia entre eles desde o início da trama. Como tantos outros, foi um momento de grande poesia nesta história de Benedito Ruy Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.

“Meu Pedacinho de Chão” foi exibida originalmente em 1971. Tinha, como já expressou o autor, cunho educativo explícito. Reescrita para a exibição em 2014, a novela foi transformada por Carvalho em um conto de fadas encantador. As “mensagens” de Barbosa ganharam um tom singelo, aparentemente destinado a um público infantil, mas a repercussão da novela mostra que ela agrada a gente de todas as idades.

“Cabresto de linguagem”

Carvalho brinca com vários cânones do gênero. Os animais são de plástico, as flores parecem de papel, os personagens se vestem e se movem como bonecos. A câmera nunca está onde o espectador se acostumou, a trilha sonora ignora os “últimos sucessos” e a edição, cuidadosa, surpreende a cada cena.

O diretor tem extraído desempenhos incríveis de atores que, há anos, se repetiam em cena, como Rodrigo Lombardi e Juliana Paes, além de dar visibilidade a rostos menos conhecidos na TV, mas igualmente impressionantes, como Irandhir Santos, Flavio Bauraqui, Paula Barbosa, Johnny Massaro e Dani Ornellas.

“Meu Pedacinho de Chão” é uma novela poética, esteticamente fabulosa, com uma história simples, mas atraente, com personagens fascinantes, como o capataz analfabeto que se apaixonou pela professora, ou a filha do fazendeiro de gestos rudes e másculos, que está descobrindo a sua feminilidade.

Diretor de programas como “Os Maias”, “Hoje É Dia de Maria”, “A Pedra do Reino”, “Capitu” e “Suburbia”, Carvalho costuma ser alvo de ironias porque sempre defende em público a ideia de que a televisão tem condições de ir um pouco além do mero entretenimento.

Como disse à Folha, numa entrevista a Sylvia Colombo em 2007: “Pertenço ao grupo daqueles que acreditam que o público não é burro, mas doutrinado debaixo de um cabresto de linguagem. Luto contra isso. Sabendo da dimensão que a televisão alcança no Brasil, tratá-la apenas como diversão me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo”.

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo