Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A novela vai ao divã

Se o Brasil tem milhões de técnicos de futebol dispostos a analisar a escalação do time e o que deve ser feito em campo, tem também milhões de autores de novelas prontos para argumentar sobre escalação de elenco e enredo. Como quem pensa televisão há 64 de seus 81 anos de vida e há 36 só escreve folhetins e minisséries, Manoel Carlos fecha, esta semana, sua 15ª telenovela recebendo diagnósticos de toda espécie para Em Família, que deixa a faixa das 9 da noite na Globo no próximo sábado, com o título de menor audiência média (saldo do primeiro ao último capítulo) no horário: 30 pontos na Grande São Paulo.

Em entrevista por e-mail ao Estado, a quem disse que esta seria sua última novela – e isso foi antes da estreia – o autor não ignora as resistências do público sobre determinados assuntos. Sabe que é preciso muitas vezes cutucar o senso comum para agregar reflexão e repertório ao telespectador.

Quanto ao estilo da obra, abastecida de longos diálogos, afirma que não fez nada diferente do que vem fazendo há 36 anos. “Se cometi erros sendo dessa maneira, então errei sempre.” Sendo assim, convém acreditar que o público mudou. “Escrevo muito, gosto disso. Pode ser que os tempos sejam outros e que não haja mais tanto espaço para se conversar nas novelas”, num mundo em que as pessoas “telegrafam seus sentimentos”.

Sentiu que houve rejeição ao final feliz entre Clara e Marina?

Manoel Carlos – Senti e não estranhei. Até porque a adesão a elas também foi bastante expressiva, principalmente nas redes sociais. Toda novela provoca polêmica, prós e contras, isso ou aquilo. Faz parte. O que senti muito claramente é que a imprensa (dos jornais e revistas) é muito conservadora e iluminou mais os que eram contra Clara e Marina.

Houve moralismo pelo fato de Clara deixar um marido bacana, que superou um problema sério de saúde, e um filho fofo, que batalha pelo casamento dos pais?

M.C. – Sim, isso deve ter influído. Como também deve ter pesado o fato de que o marido era o Gianne (Reynaldo Gianecchini), reconhecidamente um ator de grande poder de sedução junto ao público.

Há a percepção de que a torcida pelo casal gay foi maior em 'Amor à Vida’, quando dois rapazes se uniam para cuidar de duas crianças e um senhor. Tecnicamente, você concorda com isso?

M.C. – Francamente, não percebi isso, não tinha como perceber, pois eu já estava envolvido com a minha novela. Mas acredito que na novela do Walcyr (Carrasco) a aceitação do casal tenha obtido maior aprovação.

Acredita que a torcida por meninas gays seja menor que por casais gays masculinos? A plateia é machista? Conservadora?

M.C. – Sem dúvida alguma. Até nisso as mulheres têm menos direitos do que os homens. Não podem ser tão livres em suas escolhas. Sempre foi assim. Vi muitas cenas agressivas contra mulheres homossexuais, há 50, 60 anos. De lá pra cá não houve tanta mudança, ainda que muita gente finja o contrário. Mas as pessoas – em sua maioria – não aceitam com facilidade essas diferenças, assim como outras, entre elas a da cor da pele. O que parece que é aceitação é apenas medo de ser chamada de preconceituosa. Já que isso foi até criminalizado.

Quem é o mocinho da história? Laerte pode ser visto como vilão?

M.C. – Laerte é doente e demonstrou isso desde o primeiro momento em que apareceu. Mas o encontro involuntário com Luiza o levou a reviver o passado e o amor por Helena. Isso desencadeou a crise da qual ele não consegue fugir. Pode-se dizer que é um prisioneiro do passado. Não é um vilão clássico que persegue e faz maldades. Não. É um homem sensível e atormentado, como boa parte dos grandes artistas. Por conta disso, é muitas vezes cruel. Exibe também os sintomas da síndrome de Dom Juan – o domjuanismo – precisando ser amado por todos, exercendo seu poder de sedução. Quer ser admirado e visto como um conquistador. Foi assim com Helena, Shirley, Verônica, Luiza e Lívia.

Você acha que errou em algum aspecto?

M.C. – Não errei especificamente nessa novela. Fiz do jeito que fiz todas as outras, desde ‘Maria Maria’ há 36 anos. Personagens que verbalizam o que sentem e que se confessam em longos textos. Escrevo muito, gosto disso. Pode ser que os tempos sejam outros e que não haja mais tanto espaço para se conversar nas novelas. Todos têm pressa, telegrafam seus sentimentos. Escreve-se ‘tb’, ao invés de ‘também’. É um sintoma. Mas pode-se viver no futuro um renascimento, em que a palavra volte a ocupar um lugar de relevo. Mesmo na televisão. Se cometi erros sendo dessa maneira, então errei sempre. E aí sim, pode-se dizer que o público mudou.

A que atribui a audiência aquém do esperado, considerando que ‘Em Família’ teve o ibope mais baixo de todas as novelas do horário?

M.C. – Não vi dessa maneira. A audiência estabilizou-se entre 30 e 32 nos melhores dias, em SP. E de até 35 no Rio, além de expressivos números no PNT (Painel Nacional de TV do Ibope). Dizer que boa audiência é a partir de 35% é apenas papagaiar o que a Globo definiu como meta há muitos anos e logo logo terá que rever e mudar esses parâmetros. É uma influência que a TV exerce sobre a mídia. Estranho que os jornais não façam matérias procurando saber a razão do Rio ter números tão diferentes dos de São Paulo. Agora, claro que eu queria uma audiência maior. Mas talvez não existam números muito maiores.

Acredita que a presença dominante de classes A e B, em detrimento de nova classe C e populares em cena, afetou a audiência?

M.C. – Algumas pessoas dizem isso. Pode ser. A mídia propaga a evolução econômica da nova classe C, que passou a comprar freezer, máquinas de lavar e passar, televisores de muitas polegadas, automóveis zero quilômetro. Que passaram a usar vários celulares, vão a bons restaurantes, etc., etc., mas que não compraram livros. Nem procuraram uma via cultural. Tudo bem que educação e cultura são deveres do Estado. Entendo isso. Mas minha novela colocou Villa-Lobos, Bach, Mozart e Debussy às 21 horas, na rede mais poderosa do País. Todos os dias a boa música estava ali, na tela da Globo. E muitos aproveitaram. Também me deixou feliz o aumento do número de doadores de órgãos, como o crescimentos de alunos de flauta nos conservatórios. Isso me alegra mais do que vender salchichas aos salchicheiros.

Qual núcleo lhe deu mais prazer durante essa trajetória?

M.C. – Tenho um grande elenco. Meu prazer, talvez por causa da minha formação, é ver bons atores representarem. Por isso posso afirmar com toda a sinceridade que aplaudi o desempenho de todos.

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Cristina Padiglione, do Estado de S.Paulo